The Alienist
Simăo Bacamarte explained that Dona Evarista possessed
first-class physiological and anatomical conditions, she digested with
ease, slept well, had a good pulse, and excellent sight; she was thus fit
to give him robust, healthy and smart children.
Machado de Assis
De como Itaguaí ganhou uma casa de Orates
As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali
um certo médico, o Dr. Simăo Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior
dos médicos do Brasil, de Portugal e das Espanhas. Estudara em Coimbra
e Pádua. Aos trinta e quatro anos regressou ao Brasil, năo podendo el-rei
alcançar dele que ficasse em Coimbra, regendo a universidade, ou em Lisboa,
expedindo os negócios da monarquia.
— A cięncia, disse ele a Sua majestade, é o meu emprego único; Itaguaí
é o meu universo.
Dito isto, meteu-se em Itaguaí, e entregou-se de corpo e alma ao estudo
da cięncia, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas
com cataplasmas. Aos quarenta anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas,
senhora de vinte e cinco anos, viúva de um juiz de fora, e năo bonita nem
simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e năo menos
franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simăo Bacamarte explicou-lhe
que D. Evarista reunia condiçőes fisiológicas e anatômicas de primeira
ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso, e
excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, săos e
inteligentes. Se além dessas prendas, — únicas dignas de preocupaçăo de
um sábio, D. Evarista era mal composta de feiçőes, longe de lastimá-lo,
agradecia-o a Deus, porquanto năo corria o risco de preterir os interesses
da cięncia na contemplaçăo exclusiva, miúda e vulgar da consorte.
D. Evarista mentiu ŕs esperanças do Dr. Bacamarte, năo lhe deu filhos
robustos nem mofinos. A índole natural da cięncia é a longanimidade; o
nosso médico esperou tręs anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse
tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritores árabes
e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas ŕs universidades
italianas e alemăs, e acabou por aconselhar ŕ mulher um regímen alimentício
especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco
de Itaguaí, năo atendeu ŕs admoestaçőes do esposo; ŕ sua resistęncia —
explicável, mas inqualificável, — devemos a total extinçăo da dinastia
dos Bacamartes.
Mas a cięncia tem o inefável dom de curar todas as mágoas; o nosso médico
mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi entăo que
um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atençăo, — o recanto
psíquico, o exame da patologia cerebral. Năo havia na colônia, e ainda
no reino, uma só autoridade em semelhante matéria, mal explorada, ou quase
inexplorada. Simăo Bacamarte compreendeu que a cięncia lusitana, e particularmente
a brasileira, podia cobrir-se de “louros imarcescíveis”, — expressăo
usada por ele mesmo, mas em um arroubo de intimidade doméstica; exteriormente
era modesto, segundo convém aos sabedores.
— A saúde da alma, bradou ele, é a ocupaçăo mais digna do médico.
— Do verdadeiro médico, emendou Crispim Soares, boticário da vila,
e um dos seus amigos e comensais.
A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas,
tinha o de năo fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso
era trancado em uma alcova, na própria casa, e, năo curado, mas descurado,
até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam
ŕ solta pela rua. Simăo Bacamarte entendeu desde logo reformar tăo ruim
costume; pediu licença ŕ câmara para agasalhar e tratar no edifício que
ia construir todos os loucos de Itaguaí e das demais vilas e cidades, mediante
um estipęndio, que a câmara lhe daria quando a família do enfermo o năo
pudesse fazer. A proposta excitou a curiosidade de toda a vila, e encontrou
grande resistęncia, tăo certo é que dificilmente se desarraigam hábitos
absurdos, ou ainda maus. A idéia de meter os loucos na mesma casa vivendo
em comum, pareceu em si mesma sintoma de demęncia e năo faltou quem o insinuasse
ŕ própria mulher do médico.
— Olhe, D. Evarista, disse-lhe o padre Lopes, vigário do lugar, veja
se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro. Isto de estudar sempre,
sempre, năo é bom, vira o juízo.
D. Evarista ficou aterrada. Foi ter com o marido, disse-lhe “que
estava com deseaw6kx”, um principalmente, o de vir ao Rio de Janeiro
e comer tudo o que a ele lhe parecesse adequado a certo fim. Mas aquele
grande homem, com a rara sagacidade que o distinguia, penetrou a intençăo
da esposa e redargüiu-lhe sorrindo que năo tivesse medo. Dali foi ŕ câmara,
onde os vereadores debatiam a proposta, e defendeu-a com tanta eloqüęncia,
que a maioria resolveu autorizá-lo ao que pedira, votando ao mesmo tempo
um imposto destinado a subsidiar o tratamento, alojamento e mantimento
dos doidos pobres. A matéria do imposto năo foi fácil achá-la; tudo estava
tributado em Itaguaí. Depois de longos estudos, assentou-se em permitir
o uso de dois penachos nos cavalos dos enterros. Quem quisesse emplumar
os cavalos de um coche mortuário pagaria dois tostőes ŕ câmara, repetindo-se
tantas vezes esta quantia quantas fossem as horas decorridas entre a do
falecimento e a da última bęnçăo na sepultura. O escrivăo perdeu-se nos
cálculos aritméticos do rendimento possível da nova taxa; e um dos vereadores,
que năo acreditava na empresa do médico, pediu que se relevasse o escrivăo
de um trabalho inútil.
— Os cálculos năo săo precisos, disse ele, porque o Dr. Bacamarte năo
arranja nada. Quem é que viu agora meter todos os doidos dentro da mesma
casa?
Enganava-se o digno magistrado; o médico arranjou tudo. Uma vez empossado
da licença começou logo a construir a casa. Era na Rua Nova, a mais bela
rua de Itaguaí naquele tempo; tinha cinqüenta janelas por lado, um pátio
no centro, e numerosos cubículos para os hóspedes. Como fosse grande arabista,
achou no Corăo que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideraçăo
de que Alá lhes tira o juízo para que năo pequem. A idéia pareceu-lhe bonita
e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha
medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito
VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o padre Lopes lhe contasse,
ao almoço, a vida daquele pontífice eminente.
A Casa Verde foi o nome dado ao asilo, por alusăo ŕ cor das janelas,
que pela primeira vez apareciam verdes em Itaguaí. Inaugurou-se com imensa
pompa; de todas as vilas e povoaçőes próximas, e até remotas, e da própria
cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir ŕs cerimônias, que
duraram sete dias. Muitos dementes já estavam recolhidos; e os parentes
tiveram ocasiăo de ver o carinho paternal e a caridade cristă com que eles
iam ser tratados. D. Evarista, contentíssima com a glória do marido, vestiu-se
luxuosamente, cobriu-se de jóias, flores e sedas. Ela foi uma verdadeira
rainha naqueles dias memoráveis; ninguém deixou de ir visitá-la duas e
tręs vezes, apesar dos costumes caseiros e recatados do século, e năo só
a cortejavam como a louvavam; porquanto, — e este fato é um documento
altamente honroso para a sociedade do tempo, — porquanto viam nela a feliz
esposa de um alto espírito, de um varăo ilustre, e, se lhe tinham inveja,
era a santa e nobre inveja dos admiradores.
Ao cabo de sete dias expiraram as festas públicas; Itaguaí tinha finalmente
uma casa de Orates.
II
Torrentes de loucos
Tręs dias depois, numa expansăo íntima com o boticário Crispim Soares,
desvendou o alienista o mistério do seu coraçăo.
— A caridade, Sr. Soares, entra decerto no meu procedimento, mas entra
como tempero, como o sal das coisas, que é assim que interpreto o dito
de S. Paulo aos Coríntios: “Se eu conhecer quanto se pode saber, e
năo tiver caridade, năo sou nada.” O principal nesta minha obra da
Casa Verde é estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe
os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal. Este
é o mistério do meu coraçăo. Creio que com isto presto um bom serviço ŕ
humanidade.
— Um excelente serviço, corrigiu o boticário.
— Sem este asilo, continuou o alienista, pouco poderia fazer; ele dá-me,
porém, muito maior campo aos meus estudos.
— Muito maior, acrescentou o outro.
E tinha razăo. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos
ŕ Casa Verde. Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a
família dos deserdados do espírito. Ao cabo de quatro meses, a Casa Verde
era uma povoaçăo. Năo bastaram os primeiros cubículos; mandou-se anexar
uma galeria de mais trinta e sete. O padre Lopes confessou que năo imaginara
a existęncia de tantos doidos no mundo, e menos ainda o inexplicável de
alguns casos. Um, por exemplo, um rapaz bronco e vilăo, que todos os dias,
depois do almoço, fazia regularmente um discurso acadęmico, ornado de tropos,
de antíteses, de apóstrofes, com seus recamos de grego e latim, e suas
borlas de Cícero, Apuleio e Tertuliano. O vigário năo queria acabar de
crer. Quę! um rapaz que ele vira, tręs meses antes, jogando peteca na rua!
— Năo digo que năo, respondia-lhe o alienista; mas a verdade é o que
Vossa Reverendíssima está vendo. Isto é todos os dias.
— Quanto a mim, tornou o vigário, só se pode explicar pela confusăo
das línguas na torre de Babel, segundo nos conta a Escritura; provavelmente,
confundidas antigamente as línguas, é fácil trocá-las agora, desde que
a razăo năo trabalhe…
— Essa pode ser, com efeito, a explicaçăo divina do fenômeno, concordou
o alienista depois de refletir um instante, mas năo é impossível que haja
também alguma razăo humana, e puramente científica, e disso trato…
— Vá que seja, e fico ansioso. Realmente!
Os loucos por amor eram tręs ou quatro, mas só dois espantavam pelo
curioso do delírio. O primeiro, um falcăo, rapaz de vinte cinco anos, supunha-se
estrela-d’alva, abria os braços e alargava as pernas, para dar-lhes certa
feiçăo de raios, e ficava assim horas esquecidas a perguntar se o sol já
tinha saído para ele recolher-se. O outro andava sempre, sempre, sempre,
ŕ roda das salas ou do pátio, ao longo dos corredores ŕ procura do fim
do mundo. Era um desgraçado, a quem a mulher deixou por seguir um peralvilho.
Mal descobrira a fuga, armou-se de uma garrucha, e saiu-lhes no encalço,
achou-os duas horas depois, ao pé de uma lagoa, matou-os a ambos com os
maiores requintes de crueldade.
O ciúme satisfez-se, mas o vingado estava louco. E entăo começou aquela
ânsia de ir ao fim do mundo ŕ cata dos fugitivos.
A mania das grandezas tinha exemplares notáveis. O mais notável era
um pobre diabo, filho de um algibebe, que narrava ŕs paredes (porque năo
olhava nunca para nenhuma pessoa) toda a sua genealogia, que era esta:
— Deus engendrou um ovo, o ovo engendrou a espada, a espada engendrou
Davi, Davi engendrou a púrpura, a púrpura engendrou o duque, o duque engendrou
o marquęs, o marquęs engendrou o conde, que sou eu.
Dava uma pancada na testa, um estalo com os dedos, e repetia cinco,
seis vezes seguidas:
— Deus engendrou um ovo, o ovo, etc.
Outro da mesma espécie era um escrivăo, que se vendia por mordomo do
rei; outro era um boiadeiro de Minas, cuja mania era distribuir boiadas
a toda a gente, dava trezentas cabeças a um, seiscentas a outro, mil e
duzentas a outro, e năo acabava mais. Năo falo dos casos de monomania religiosa;
apenas citarei um sujeito que, chamando-se Joăo de Deus, dizia ser o deus
Joăo, e prometia o reino dos céus a quem o adorasse e as penas do inferno
aos outros; e depois desse, o licenciado Garcia, que năo dizia nada, porque
imaginava que no dia em que chegasse a proferir uma só palavra, todas as
estrelas se despregariam do céu e abrasariam a terra; tal era o poder que
recebera de Deus.
Assim o escrevia ele no papel que o alienista lhe mandava dar, menos
por caridade do que por interesse científico.
Que, na verdade, a pacięncia do alienista era ainda mais extraordinária
do que todas as manias hospedadas na Casa Verde; nada menos que assombrosa.
Simăo Bacamarte começou por organizar um pessoal de administraçăo; e, aceitando
esta idéia ao boticário Crispim Soares, aceitou-lhe também dois sobrinhos,
a quem incumbiu da execuçăo de um regimento que lhes deu, aprovado pela
Câmara, da distribuiçăo da comida e da roupa, e assim também da escrita,
etc. Era o melhor que podia fazer, para somente cuidar do seu ofício. —
A Casa Verde, disse ele ao vigário, é agora uma espécie de mundo, em que
há o governo temporal e governo espiritual. E o padre Lopes ria
deste pio trocado, — e acrescentava, — com o único fim de dizer também
uma chalaça: — Deixe estar, deixe estar, que hei de mandá-lo denunciar
ao papa.
Uma vez desonerado da administraçăo, o alienista procedeu a uma vasta
classificaçăo dos seus enfermos. Dividiu-os primeiramente em duas classes
principais: os furiosos e os mansos; daí passou ŕs subclasses, monomanias,
delírios, alucinaçőes diversas. Isto feito, começou um estudo acurado e
contínuo; analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversőes,
as simpatias, as palavras, os gestos, as tendęncias; inquiria da vida dos
enfermos, profissăo, costumes, circunstâncias da revelaçăo mórbida, acidentes
da infância e da mocidade, doenças de outra espécie, antecedentes na família,
uma devassa, enfim, como a năo faria o mais atilado corregedor. E cada
dia notava uma observaçăo nova, uma descoberta interessante, um fenômeno
extraordinário. Ao mesmo tempo estudava o melhor regímen, as substâncias
medicamentosas, os meios curativos e os meios paliativos, năo só os que
vinham nos seus amados árabes, como os que ele mesmo descobria, ŕ força
da sagacidade e pacięncia. Ora, todo esse trabalho levara-lhe o melhor
e o mais do tempo. Mal dormia e mal comia; e, ainda comendo, era como se
trabalhasse, porque ora interrogava um texto antigo, ora ruminava uma questăo,
e ia muitas vezes de um cabo a outro do jantar sem dizer uma só palavra
a D. Evarista.
III
Deus sabe o que faz
A ilustre dama, ao fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das
mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco
e suspirava a cada canto. Năo ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche,
porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava
a olhos vistos. Um dia, ao jantar, como lhe perguntasse o marido o que
é que tinha, respondeu tristemente que nada; depois atreveu-se um pouco,
e foi ao ponto de dizer que se considerava tăo viúva como dantes. E acrescentou:
— Quem diria nunca que meia dúzia de lunáticos…
Năo acabou a frase; ou antes, acabou-a levantando os olhos ao teto,
— os olhos, que eram a sua feiçăo mais insinuante — negros, grandes,
lavados de uma luz úmida, como os da aurora. Quanto ao gesto, era o mesmo
que empregara no dia em que Simăo Bacamarte a pediu em casamento. Năo dizem
as crônicas se D. Evarista brandiu aquela arma com o perverso intuito de
degolar de uma vez a cięncia, ou, pelo menos, decepar-lhe as măos; mas
a conjetura é verossímil. Em todo caso, o alienista năo lhe atribuiu intençăo.
E năo se irritou o grande homem, năo ficou sequer consternado. O metal
de seus olhos năo deixou de ser o mesmo metal, duro, liso, eterno, nem
a menor prega veio quebrar a superfície da fronte quieta como a água de
Botafogo. Talvez um sorriso lhe descerrou os lábios, por entre os quais
filtrou esta palavra macia como o óleo do Cântico :
— Consinto que vás dar um passeio ao Rio de Janeiro.
D. Evarista sentiu faltar-lhe o chăo debaixo dos pés. Nunca dos nuncas
vira o Rio de Janeiro, que posto năo fosse sequer uma pálida sombra do
que hoje é, todavia era alguma coisa mais do que Itaguaí. Ver o Rio de
Janeiro, para ela, equivalia ao sonho do hebreu cativo. Agora, principalmente,
que o marido assentara de vez naquela povoaçăo interior, agora é que ela
perdera as últimas esperanças de respirar os ares da nossa boa cidade;
e justamente agora é que ele a convidara a realizar os seus deseaw6kx de
menina e moça. D. Evarista năo pôde dissimular o gosto de semelhante proposta.
Simăo Bacamarte pegou-lhe a măo e sorriu, — um sorriso tanto quanto filosófico,
além de conjugal, em que parecia traduzir-se este pensamento: — “Năo
há remédio certo para as dores da alma; esta senhora definha, porque lhe
parece que a năo amo; dou-lhe o Rio de Janeiro, e consola-se.” E porque
era homem estudioso tomou nota da observaçăo.
Mas um dardo atravessou o coraçăo de D. Evarista. Conteve-se, entretanto;
limitou-se a dizer ao marido que, se ele năo ia năo iria também, porque
năo havia de meter-se sozinha pelas estradas.
— Irá com sua tia, redargüiu o alienista.
Note-se que D. Evarista tinha pensado nisso mesmo; mas năo quisera pedi-lo
nem insinuá-lo, em primeiro lugar porque seria impor grandes despesas ao
marido, em segundo lugar porque era melhor, mais metódico e racional que
a proposta viesse dele.
— Oh! mas o dinheiro que será preciso gastar! suspirou D. Evarista
sem convicçăo.
— Que importa? Temos ganho muito, disse o marido. Ainda ontem o escriturário
prestou-me contas. Queres ver?
E levou-a aos livros. D. Evarista ficou deslumbrada. Era uma via-láctea
de algarismos. E depois levou-a ŕs arcas, onde estava o dinheiro.
Deus! eram montes de ouro, eram mil cruzados sobre mil cruzados, dobrőes
sobre dobrőes; era a opulęncia.
Enquanto ela comia o ouro com os seus olhos negros, o alienista fitava-a,
e dizia-lhe ao ouvido com a mais pérfida das alusőes:
— Quem diria que meia dúzia de lunáticos…
D. Evarista compreendeu, sorriu e respondeu com muita resignaçăo:
— Deus sabe o que faz!
Tręs meses depois efetuava-se a jornada. D. Evarista, a tia, a mulher
do boticário, um sobrinho deste, um padre que o alienista conhecera em
Lisboa, e que de aventura achava-se em Itaguaí, cinco ou seis pajens, quatro
mucamas, tal foi a comitiva que a populaçăo viu dali sair em certa manhă
do męs de maio. As despedidas foram tristes para todos, menos para o alienista.
Conquanto as lágrimas de D. Evarista fossem abundantes e sinceras, năo
chegaram a abalá-lo. Homem de cięncia; e se alguma coisa o preocupava naquela
ocasiăo, se ele deixava correr pela multidăo um olhar inquieto e policial,
năo era outra coisa mais do que a idéia de que algum demente podia achar-se
ali misturado com a gente de juízo.
— Adeus! soluçaram enfim as damas e o boticário.
E partiu a comitiva. Crispim Soares, ao tornar a casa, trazia os olhos
entre as duas orelhas da besta ruana em que vinha montado; Simăo Bacamarte
alongava os seus pelo horizonte adiante, deixando ao cavalo a responsabilidade
do regresso. Imagem vivaz do gęnio e do vulgo! Um fita o presente com todas
as suas lágrimas e saudades, outro devassa o futuro com todas as suas auroras.
IV
Uma teoria nova
Ao passo que D. Evarista, em lágrimas, vinha buscando o Rio de Janeiro,
Simăo Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéia arrojada e
nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava
dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em
casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as
falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos.
Um dia de manhă, — eram passadas tręs semanas, — estando Crispim Soares
ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o
mandava chamar.
— Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou
o portador.
Crispim empalideceu. Que negócio importante podia ser, se năo alguma
notícia da comitiva, e especialmente da mulher? Porque este tópico deve
ficar claramente definido, visto insistirem nele os cronistas: Crispim
amava a mulher, e, desde trinta anos, nunca estiveram separados um só dia.
Assim se explicavam os monólogos que ele fazia agora, e que os fâmulos
lhe ouviam muita vez: “Anda, bem feito, quem te mandou consentir na
viagem de Cesária? Bajulador, torpe bajulador! Só para adular ao Dr. Bacamarte.
Pois agora agüenta-te; anda, agüenta-te, alma de lacaio, fracalhăo, vil,
miserável. Dizes amém a tudo, năo é? aí tens o lucro, biltre!” —
E muitos outros nomes feios, que um homem năo deve dizer aos outros, quanto
mais a si mesmo. Daqui a imaginar o efeito do recado é um nada. Tăo depressa
ele o recebeu como abriu măo das drogas e voou ŕ Casa Verde.
Simăo Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria
abotoada de circunspeçăo até o pescoço.
— Estou muito contente, disse ele.
— Notícias do nosso povo? perguntou o boticário com a voz tręmula.
O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:
— Trata-se de coisa mais alta, trata-se de uma experięncia científica.
Digo experięncia, porque năo me atrevo a assegurar desde já a minha idéia;
nem a cięncia é outra coisa, Sr. Soares, senăo uma investigaçăo constante.
Trata-se, pois, de uma experięncia, mas uma experięncia que vai mudar a
face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha
perdida no oceano da razăo; começo a suspeitar que é um continente.
Disse isto, e calou-se, para ruminar o pasmo do boticário. Depois explicou
compridamente a sua idéia. No conceito dele a insânia abrangia uma vasta
superfície de cérebros; e desenvolveu isto com grande cópia de raciocínios,
de textos, de exemplos. Os exemplos achou-os na história e em Itaguaí;
mas, como um raro espírito que era, reconheceu o perigo de citar todos
os casos de Itaguaí, e refugiou-se na história. Assim, apontou com especialidade
alguns personagens célebres, Sócrates, que tinha um demônio familiar, Pascal,
que via um abismo ŕ esquerda, Maomé, Caracala, Domiciano, Calígula, etc.,
uma enfiada de casos e pessoas, em que de mistura vinham entidades odiosas,
e entidades ridículas. E porque o boticário se admirasse de uma tal promiscuidade,
o alienista disse-lhe que era tudo a mesma coisa, e até acrescentou sentenciosamente:
— A ferocidade, Sr. Soares, é o grotesco a sério.
— Gracioso, muito gracioso! exclamou Crispim Soares, levantando as
măos ao céu.
Quanto ŕ idéia de ampliar o território da loucura, achou-a o boticário
extravagante; mas a modéstia, principal adorno de seu espírito, năo lhe
sofreu confessar outra coisa além de um nobre entusiasmo; declarou-a sublime
e verdadeira, e acrescentou que era “caso de matraca”. Esta expressăo
năo tem equivalente no estilo moderno. Naquele tempo, Itaguaí, que como
as demais vilas, arraiais e povoaçőes da colônia, năo dispunha de imprensa,
tinha dois modos de divulgar uma notícia; ou por meio de cartazes manuscritos
e pregados na porta da câmara e da matriz; — ou por meio de matraca.
Eis em que consistia este segundo uso. Contratava-se um homem, por um
ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na măo.
De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente e ele anunciava
o que lhe incumbiam, — um remédio para sezőes, umas terras lavradias,
um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo
discurso do ano, etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública;
mas era conservado pela grande energia de divulgaçăo que possuía. Por exemplo,
um dos vereadores, — aquele justamente que mais se opusera ŕ criaçăo da
Casa Verde, — desfrutava a reputaçăo de perfeito educador de cobras e
macacos, e aliás nunca domesticara um só desses bichos; mas tinha o cuidado
de fazer trabalhar a matraca todos os meses. E dizem as crônicas que algumas
pessoas afirmavam ter visto cascavéis dançando no peito do vereador; afirmaçăo
perfeitamente falsa, mas só devida ŕ absoluta confiança no sistema. Verdade,
verdade, nem todas as instituiçőes do antigo regímen mereciam o desprezo
do nosso século.
— Há melhor do que anunciar a minha idéia, é práticá-la, respondeu
o alienista ŕ insinuaçăo do boticário.
E o boticário, năo divergindo sensivelmente deste modo de ver disse-lhe
que sim, que era melhor começar pela execuçăo.
— Sempre haverá tempo de a dar ŕ matraca, concluiu ele.
Simăo Bacamarte refletiu ainda um instante, e disse:
— Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares,
é ver se posso extrair a pérola, que é a razăo; por outros termos, demarquemos
definitivamente os limites da razăo e da loucura. A razăo é o perfeito
equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia.
O Vigário Lopes, a quem ele confiou a nova teoria, declarou lisamente
que năo chegava a entendę-la, que era uma obra absurda; e, se năo era absurda,
era de tal modo colossal que năo merecia princípio de execuçăo.
— Com a definiçăo atual, que é a de todos os tempos, acrescentou, a
loucura e a razăo estăo perfeitamente delimitadas. Sabe-se onde uma acaba
e onde a outra começa. Para que transpor a cerca?
Sobre o lábio fino e discreto do alienista roçou a vaga sombra de uma
intençăo de riso, em que o desdém vinha casado ŕ comiseraçăo; mas nenhuma
palavra saiu de suas egrégias entranhas.
A cięncia contentou-se em estender a măo ŕ teologia, — com tal segurança,
que a teologia năo soube enfim se devia crer em si ou na outra. Itaguaí
e o universo ŕ beira de uma revoluçăo.
V
O terror
Quatro dias depois, a populaçăo de Itaguaí ouviu consternada a notícia
de que um certo Costa fora recolhido ŕ Casa Verde.
— Impossível!
— Qual impossível! foi recolhido hoje de manhă.
— Mas, na verdade, ele năo merecia… Ainda em cima! depois de tanto
que ele fez…
Costa era um dos cidadăos mais estimados de Itaguaí. Herdara quatrocentos
mil cruzados em boa moeda de el-rei Dom Joăo V, dinheiro cuja renda bastava,
segundo lhe declarou o tio no testamento, para viver “até o fim do
mundo”. Tăo depressa recolheu a herança, como entrou a dividi-la em
empréstimos, sem usura, mil cruzados a um, dois mil a outro, trezentos
a este, oitocentos ŕquele, a tal ponto que, no fim de cinco anos, estava
sem nada. Se a miséria viesse de chofre, o pasmo de Itaguaí seria enorme;
mas veio devagar; ele foi passando da opulęncia ŕ abastança, da abastança
ŕ mediania, da mediania ŕ pobreza, da pobreza ŕ miséria, gradualmente.
Ao cabo daqueles cinco anos, pessoas que levavam o chapéu ao chăo, logo
que ele assomava no fim da rua, agora batiam-lhe no ombro, com intimidade,
davam-lhe piparotes no nariz, diziam-lhe pulhas. E o Costa sempre lhano,
risonho. Nem se lhe dava de ver que os menos corteses eram justamente os
que tinha ainda a dívida em aberto; ao contrário, parece que os agasalhava
com maior prazer; e mais sublime resignaçăo. Um dia, como um desses incuráveis
devedores lhe atirasse um chalaça grossa, e ele se risse dela, observou
um desafeiçoado, com certa perfídia: — “Vocę suporta esse sujeito
para ver se ele lhe paga”. Costa năo se deteve um minuto, foi ao devedor
e perdoou-lhe a dívida. — “Năo admira, retorquiu o outro; o Costa
abriu măo de uma estrela, que está no céu”. Costa era perspicaz, entendeu
que ele negava todo o merecimento ao ato, atribuindo-lhe a intençăo de
rejeitar o que năo vinham meter-lhe na algibeira. Era também pundonoroso
e inventivo; duas horas depois achou um meio de provar que lhe năo cabia
um tal labéu; pegou de algumas dobras, e mandou-as de empréstimo ao devedor.
— Agora espero que… — pensou ele sem concluir a frase.
Esse último rasgo do Costa persuadiu a crédulos e incrédulos; ninguém
mais pôs em dúvida os sentimentos cavalheirescos daquele digno cidadăo.
As necessidades mais acanhadas saíram ŕ rua, vieram bater-lhe ŕ porta,
com os seus chinelos velhos, com as suas capas remendadas. Um verme, entretanto,
roía a alma do Costa; era o conceito do desafeto. Mas isso mesmo acabou;
tręs meses depois veio este pedir-lhe um cento e vinte cruzados com promessa
de restituir-lhos daí a dois dias; era o resíduo da grande herança, mas
era também uma nobre desforra: Costa emprestou o dinheiro logo, logo, e
sem juros. Infelizmente năo teve tempo de ser pago; cinco meses depois
era recolhido ŕ Casa Verde.
Imagina-se a consternaçăo de Itaguaí, quando soube do caso. Năo se falou
em outra coisa, dizia-se que o Costa ensandecera, ao almoço, outros que
de madrugada; e contavam-se os acessos, que eram furiosos, sombrios, terríveis,
— ou mansos, e até engraçados, conforme as versőes. Muita gente correu
ŕ Casa Verde, e achou o pobre Costa, tranqüilo, um pouco espantado, falando
com muita clareza, e perguntando por que motivo o tinham levado para ali.
Alguns foram ter com o alienista. Bacamarte aprovava esses sentimentos
de estima e compaixăo, mas acrescentava que a cięncia era a cięncia, e
que ele năo podia deixar na rua um mentecapto. A última pessoa que intercedeu
por ele (porque depois do que vou contar ninguém mais se atreveu a procurar
o terrível médico) foi uma pobre senhora, prima do Costa. O alienista disse-lhe
confidencialmente que este digno homem năo estava no perfeito equilíbrio
das faculdades mentais, ŕ vista do modo como dissipara os cabedais que…
— Isso, năo! isso, năo! interrompeu a boa senhora com energia. Se ele
gastou tăo depressa o que recebeu, a culpa năo é dele.
— Năo?
— Năo, senhor. Eu lhe digo como o negócio se passou. O defunto meu
tio năo era mau homem; mas quando estava furioso era capaz de nem tirar
o chapéu ao Santíssimo. Ora, um dia, pouco tempo antes de morrer, descobriu
que um escravo lhe roubara um boi; imagine como ficou.
A cara era um pimentăo; todo ele tremia, a boca escumava; lembra-me
como se fosse hoje. Entăo um homem feio, cabeludo, em mangas de camisas,
chegou-se a ele e pediu água. Meu tio (Deus lhe fale n’alma!) respondeu
que fosse beber ao rio ou ao inferno. O homem olhou para ele, abriu a măo
em ar de ameaça, e rogou-lhe esta praga: — “Todo o seu dinheiro năo
há de durar mais de sete anos e um dia, tăo certo como isto ser o sino
salamăo! E mostrou o sino salamăo impresso no braço. Foi isto,
meu senhor; foi esta praga daquele maldito.
Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos agudos como punhais.
Quando ela acabou, estendeu-lhe a măo polidamente, como se o fizesse ŕ
própria esposa do vice-rei e convidou-a a ir falar ao primo. A mísera acreditou;
ele levou-a ŕ Casa Verde e encerrou-a na galeria dos alucinados.
A notícia desta aleivosia do ilustre Bacamarte lançou o terror ŕ alma
da populaçăo. Ninguém queria acabar de crer, que, sem motivo, sem inimizade;
o alienista trancasse na Casa Verde uma senhora perfeitamente ajuizada,
que năo tinha outro crime senăo o de interceder por um infeliz. Comentava-se
o caso nas esquinas, nos barbeiros; edificou-se um romance, umas finezas
namoradas que o alienista outrora dirigira ŕ prima do Costa, a indignaçăo
do Costa e o desprezo da prima. E daí a vingança. Era claro. Mas a austeridade
do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma
tal hipótese. Histórias! Tudo isso era naturalmente a capa do velhaco.
E um dos mais crédulos chegou a murmurar que sabia de outras coisas, năo
as dizia, por năo ter certeza plena, mas sabia, quase que podia jurar.
— Vocę, que é íntimo dele, năo nos podia dizer o que há, o que houve,
que motivo…
Crispim Soares derretia-se todo. Esse interrogar da gente inquieta e
curiosa, dos amigos atônitos, era para ele uma consagraçăo pública. Năo
havia duvidar; toda a povoaçăo sabia enfim que o privado do alienista era
ele, Crispim, o boticário, o colaborador do grande homem e das grandes
coisas; daí a corrida ŕ botica. Tudo isso dizia o carăo jucundo e o riso
discreto do boticário, o riso e o silęncio, porque ele năo respondia nada;
um dois, tręs monossílabos, quando muito, soltos, secos, encapados no fiel
sorriso, constante e miúdo, cheio de mistérios científicos, que ele năo
podia, sem desdouro nem perigo, desvendar a nenhuma pessoa humana
— Há coisa, pensavam os mais desconfiados.
Um desses limitou-se a pensá-lo, deu de ombros e foi embora. Tinha negócios
pessoais. Acabava de construir uma casa suntuosa. Só a casa bastava para
deter e chamar toda gente; mas havia mais, — a mobília, que ele mandara
vir da Hungria e da Holanda, segundo contava, e que se podia ver do lado
de fora, porque as janelas viviam abertas, — e o jardim, que era uma obra-prima
de arte e de gosto. Esse homem, que enriquecera no fabrico de albardas,
tinha tido sempre o sonho de uma casa magnífica, jardim pomposo, mobília
rara. Năo deixou o negócio das albardas, mas repousava dele na contemplaçăo
da casa nova, a primeira de Itaguaí, mais grandiosa do que a Casa Verde,
mais nobre do que a da câmara. Entre a gente ilustre da povoaçăo havia
choro e ranger de dentes, quando se pensava ou se falava ou se louvava
a casa do albardeiro, — um simples albardeiro, Deus do Céu!
— Lá está ele embasbacado, diziam os transeuntes, de manhă.
De manhă, com efeito, era costume do Mateus estatelar-se, no meio do
jardim, com os olhos na casa, namorado, durante um longa hora, até que
vinham chamá-lo para almoçar. Os vizinhos, embora o cumprimentassem com
certo respeito, riam-se por trás dele, que era um gosto. Um desses chegou
a dizer que o Mateus seria muito mais econômico, e estaria riquíssimo,
se fabricasse as albardas para si mesmo; epigrama ininteligível, mas que
fazia rir ŕ bandeiras despregadas.
— Agora lá está o Mateus a ser comtemplado, diziam ŕ tarde.
A razăo deste outro dito era que, de tarde, quando as famílias saíam
a passeio (jantavam cedo) usava o Mateus postar-se ŕ janela, bem no centro,
vistoso, sobre um fundo escuro; trajado de branco, atitude senhoril, e
assim ficava duas e tręs horas até que anoitecia de todo. Pode crer-se
que a intençăo do Mateus era ser admirado e invejado, posto que ele năo
a confessasse a nenhuma pessoa, nem ao boticário, nem ao padre Lopes, seus
grandes amigos. E entretanto năo foi outra a alegaçăo do boticário, quando
o alienista lhe disse que o albardeiro talvez padecesse do amor das pedras,
mania que ele Bacamarte descobrira e estudava desse algum tempo. Aquilo
de contemplar a casa…
— Năo, senhor, acudiu vivavemente Crispim Soares.
— Năo?
— Há de perdoar-me; mas talvez năo saiba que ele de manhă examina a
obra, năo a admira; de tarde, săo os outros que admiram a ele e ŕ obra.
— E contou o uso do albardeiro, todas as tardes, desde cedo até o cair
da noite.
Uma volúpia científica alumiou os olhos de Simăo Bacamarte. Ou ele năo
conhecia todos os costumes do albardeiro, ou nada mais quis, interrogando
o Crispim, do que confirmar alguma notícia incerta ou suspeita vaga. A
explicaçăo satisfę-lo; mas como tinha as alegrias próprias de um sábio,
concentradas, nada viu o boticário que fizesse suspeitar uma intençăo sinistra.
Ao contrário, era de tarde, e o alienista pediu-lhe o braço para irem a
passeio. Deus! era a primeira vez que Simăo Bacamarte dava ao seu privado
tamanha honra; Crispim ficou tręmulo, atarantado, disse que sim, que estava
pronto. Chegaram duas ou tręs pessoas de fora, Crispim mandou-as mentalmente
a todos os diabos; năo só atrasavam o passeio, como podia acontecer que
Bacamarte elegesse alguma delas, para acompanhá-lo, e o dispensasse a ele.
Que impacięncia! que afliçăo! Enfim, saíram. O alienista guiou para os
lados da casa do albardeiro, viu-o ŕ janela, passou cinco, seis vezes por
diante, parando, examinando as atitudes, a expressăo do rosto. O pobre
Mateus, apenas notou que era objeto da curiosidade ou admiraçăo do primeiro
vulto de Itaguaí, redobrou a expressăo, deu outro relevo ŕs atitudes…
Triste! triste, năo fez mais do que condenar-se; no dia seguinte, foi recolhido
ŕ Casa Verde.
(First of three parts. O Alienista was originally published
in Papéis Avulsos, a collection of short stories by Machado de Assis.)