Short story

She used to lie like hell. She would swear she
was a virgin, she wanted to die single, there was an ex-fiancé
who was a smuggler and stalked her with a gun in his pocket, she
would invite me for a date and wouldn’t show up, she would cry
for no reason, she would implore that I would set a date for our
wedding, and then she would announce she was going to a
convent…she would change my name, calling me Paulo, me who
always was André…sometimes she would show up wearing fancy
clothes, golden brooch, and she had a pearl necklace bought with
what money for she was jobless?

Marcos Rey

She used to lie like hell. She would swear she
was a virgin, she wanted to die single, there was an ex-fiancé
who was a smuggler and stalked her with a gun in his pocket, she
would invite me for a date and wouldn’t show up, she would cry
for no reason, she would implore that I would set a date for our
wedding, and then she would announce she was going to a
convent…she would change my name, calling me Paulo, me who
always was André…sometimes she would show up wearing fancy
clothes, golden brooch, and she had a pearl necklace bought with
what money for she was jobless?

Marcos Rey

 

Assim que me despedi de Glória fiz meia volta, depois
mais meia, esta premeditada e cautelosa, e saí em sua
perseguição. Eu estava desconfiado, tão desconfiado que os
transeuntes que vinham em sentido contrário me olhavam
espantados. Que cara eu devia ter! Mas a culpa era dela,
mentia demais, ora afirmava que morava com uma tia, ora com a
madrasta, que trabalhava no escritório dum despachante,
contradizia-se dizendo que procurava emprego, jurava ser
virgem, queria morrer solteira, havia um ex-noivo
contrabandista que andava à sua espreita com revólver no
bolso, marcava encontros comigo e não comparecia, chorava
por qualquer coisa, implorava que eu marcasse a data do
casamento, depois anunciava sua entrada num convento, fizera
curso de manequim, havia um senhor holandês que a desejava
como amante, um patrão se apaixonara por ela, trocava meu
nome, chamando-me Paulo, eu que sempre fui André, declarava
descender de austríacos quando não descendia, às vezes
aparecia com vestidos caros, um broche de ouro, e tinha um
colar de pérolas comprado com que dinheiro se estava
desempregada? Muitas vezes saía com Glória e ela falava
pelos cotovelos, outras permanecia muda, ameaçava suicídio,
chorava de saudade da infância, recitava versos de J. G.
Araújo Jorge quando a noite era de lua, mas gostava mesmo
era da lasanha, fingia-se de tuberculosa e falsificava uma
tosse irritante, lia tudo sobre câncer, queria morar no Rio
e confessava aos íntimos que estivera apaixonada por um
cirurgião baiano. A única verdade de Glória talvez fosse a
sua beleza, trombeteada pelos seus seios altos, riaw6kx e
esféricos.

 

Comecei a desconfiar de tudo em certa tarde, nas primeiras
semanas de namoro, quando via Glória passar dirigindo um
Austin. Eu ia atravessar a Avenida e o carro quase
atropelou-me. Berrei: “Está louca, Glória!”, mas
a doida nem olhou para trás.

 

No mesmo dia eu me encontrava com ela

 

– Puxa! Hoje você ia me matando!

 

– Eu… matando você?

 

– Com aquele maldito Austin! Onde o arranjou?

 

Glória fez cara de palerma:

 

– Que Austin?

 

– Você não guiava um Austin hoje?

 

A cínica gargalhou:

 

– Mas eu não sei guiar, André. Nem sei pôr um carro em
movimento!

 

Era de enlouquecer: eu a tinha visto realmente, dirigia
com o vestido verde que sempre usava, o eterno penteado tipo
Torre de Babel, arregalara os olhos ao ver-me… Glória,
rindo diabolicamente, reafirmava que não guiava, jamais
pusera as mãos numa direção, eu precisava mudar as lentes
dos óculos ou então bebera, isso, o mais provável, bebera.

 

Esse caso do Austin abriu as cortinas do drama. Resolvi
investigar, saber direito, afinal, quem Glória era, o que
fazia, com quem vivia, virgem ou prostituta, se sabia dirigir
ou se me enganara, que idade tinha com certeza e, sobretudo –
talvez para principiar – onde ia todas as tardes. Aí está
porque fiz meia volta e depois mais meia. Precisava segui-la
sem ser pressentido, ver onde entrava ou com quem se
encontraria. Fui atrás dela separado por uns trinta metros,
vendo o seu vestido verde. Quando parou diante duma loja,
parei também. Escondi-me na entrada dum cinema. Vi Glória
dar esmola a um mendigo, depois comprou uma revista de
rádio, num sinal Siga não seguiu, parecia inclinada a
voltar, continuou andando elegantemente e, afinal, entrou
numa casa.

 

Parei na mesma porta. Era um sobrado muito velho amarelo
com amplas janelas abertas. Atravessei a rua e fiquei na
outra calçada à espera de que Glória saísse, espera
terrível porque se demorou horas para reaparecer. Às sete,
em cima da hora do encontro marcado comigo, deixou o casarão
correndo. Tive de apanhar um táxi para chegar antes que ela
à nossa esquina de sempre. Dez minutos depois a vi
aproximar-se em passos lentos e descuidados. Mudara de marcha
ao avizinhar-se da esquina. Maçã na mão.

 

– Quer?

 

– Onde esteve?

 

– Fui comprar a maçã. Quer?

 

– Mas você não veio de sua casa…

 

– Ah, bancando o detetive… Eu vou embora – ameaçou.

 

Eu sabia que ela viera do casarão amarelo, onde se
demorara cerca de três horas. Seria fácil desmoralizar a
sua mentira. Mas tinha medo de perder Glorinha sem uma prova
provada de que não procedia bem. Fomos jantar juntos e
mostrei-me alegre. À noite, em mau hotel, pensei
intensamente no Austin e no casarão amarelo. Acordei com a
boca e os lábios secos: febre.

 

Na mesma semana pude ver novamente Glória entrar no
casarão amarelo. O que era o casarão? Um escritório, uma
pensão ou um bordel? Seria Glória uma prostituta?

 

Alguém já me dissera que São Paulo é o paraíso da
prostituição vespertina, discreta, camuflada. Os senhores
burgueses não sabem disso. Ou sabem… Sei lá! Foi nesse
dia que “bolei” uma idéia cínica e ridícula,
cômica e grosseira, genial e desesperada. Diante do
casarão, no outro lado da rua, havia um prédio de vários
andares, também muito velho. Daquele prédio eu poderia ver
o que se passava dentro do casarão. Calculei que a visão
seria ótima do segundo andar.

 

Nele se via uma placa enferrujada: “Biancamano e
sobrinho – alfaiate”. Ensaiei entrar no prédio, mas a
coragem pifou. Que imbecilidade! Voltei ao hotel.

 

Durante a noite, após uns tragos, a idéia da visita à
alfaiataria amadureceu. Fruto verde e mirrado, cresceu
amarelo e saboroso. Grande idéia, sim. Minha ida à
alfaiataria poderia ser a solução de tudo. Da janela eu
veria o interior do casarão e minha Glória nos braços de
outro. Então, livrando-me da obsessão, lhe diria: “Já
sei quem você é. Vamos ao meu apartamento pôr fim a esta
comédia”.

 

No dia seguinte, logo que Glória entrou no casarão
amarelo, com os óculos pretos que comprei às pressas numa
óptica, entrei no prédio. Ao pisar as escadas, senti um
frio terrível, mas prossegui. Lá estava eu diante duma
porta com uma placa: “Biancamano e sobrinho –
alfaiate”. Entrei.

 

– Bom dia, cavalheiro!

 

Era um jovem, em mangas de camisa, que me cumprimentava.

 

– Bom dia – respondi, quase sem olhá-lo. Ah, lá estava a
janela e precisava aproximar-me dela. – Aqui é
“Biancamano e sobrinho”? – Que necessidade havia
dessa pergunta?

 

– Às suas ordens.

 

– O senhor é o sobrinho – tentei adivinhar infantilmente.

 

– Sou o sobrinho.

 

Eu me via na contingência de ser mais positivo. Afinal o
que um homem vai fazer numa alfaiataria, se não é fiscal
nem qualquer coisa do gênero?

 

– Precisava ver umas fazendas…

 

O risonho sobrinho do Sr. Biancamano, apanhando-me pelo
braço, levou-me a uma saleta onde estavam as fazendas. Era o
enorme estoque da alfaiataria, mas eu não prestava atenção
nas peças, aflito porque me conduziam para longe da janela.

 

– Que prefere? Casimira ou tropical? Temos também
fazendas estrangeiras… Com certeza quer um tropical: vejo
que sua muito com o calor.

 

Não fazia muito calor, mas eu estava suado: emoção.

 

– O que me diz desta?

 

Apanhei uma peça da fazenda, não me lembro de que cor.
Como nada comentasse, Biancamano sobrinho mostrou-me outras
peças, numa crescente expectativa.

 

– Aqui está escuro.

 

– Acendo a luz – disse acendendo um jogo poderoso de
luzes.

 

Pensei depressa:

 

– A luz artificial às vezes engana.

 

– Mas de que cor o senhor quer?

 

– Há alguma janela por aqui?

 

Ele me levou para perto duma janela interna. Fiz na peça
um exame rápido e desatento.

 

– Não é um belo padrão?

 

– A luz aqui não é muito boa…

 

– Atrevidamente, apanhei a peça e atravessei o
estabelecimento, rumo à janela da rua. Finalmente a
alcancei. Lá estava o casarão amarelo, enorme, com suas
janelas abertas, quase ao alcance de minha mão. Esbocei um
sorriso de alegria que foi logo erroneamente interpretado.

 

– Gostou deste, então?

 

– É muito movimentada esta rua? – perguntei, aéreo.

 

– Mais ou menos.

 

Fui forçado a examinar a fazenda. Não gostei. Pedi que
me trouxesse outra peça. Depois, mais outra. Quando o moço
se afastava, eu tinha tempo para espiar o casarão. Vi com
nitidez um par de pernas cruzadas. Pernas femininas. Mas não
me pareceram de Glória.

 

– É razoável esta fazenda – disse para romper o
silêncio.

 

– É de fato muito boa.

 

– Tem mais clara um pouco?

 

Veio nova peça nas mãos do rapaz. Ele não escondia sua
impaciência:

 

– Esta lhe cairá bem.

 

– O senhor me desculpe… Sou muito exigente…

 

– O senhor tem razão. Há muitas fazendas péssimas por
aí. Algumas com o rótulo de estrangeiras – confidenciou.

 

Perguntei o preço do metro da fazenda. Quanto teria de
dar de entrada? Qual o preço do feitio? Tinha algo mais a
perguntar? Tinha: se a fazenda já era molhada.

 

– Hoje estou com um pouco de pressa – lamentei. – Não
posso escolher a fazenda com calma. Amanhã eu volto.

 

Tive de sair, lembrando-me de que naquele ano eu já
fizera uma roupa de verão e outra de inverno. Seria uma
extravagância encomendar mais uma. E o pior lembrei depois:
ia chegar tarde na agência de publicidade onde trabalhava,
ciente de que diversas campanhas no marco zero me esperavam.

 

No dia seguinte fui diretamente à agência. Vi minha mesa
coberta dos malditos envelopes gigantes que os contatos
haviam colocado sobre ela. Dentro de dois, encontrei recados
mais ou menos nestes termos: “André, ponha o assento na
cadeira e termine logo esses textos”. Meu impulso foi o
de fazer todas as campanhas em tempo recorde, pretextar uma
dor de cabeça e voltar ao meu posto de observação. Mas
não era possível. Como se pode fazer correndo uma campanha
sobre implementos agrícolas ou tornos quando há tantos
detalhes a estudar? Resultado: não pude ir ao alfaiate e
não concluí nenhuma campanha. Os envelopes gigantes se
acumulavam sobre a minha escrivaninha e nada de eu passá-los
ao Tráfego da agência. Um emprego daqueles, apesar de
cacete, não podia perder. Entrei desesperado na sala do
diretor:

 

– Seu Galvão…

 

O diretor notou logo algo estranho em mim.

 

– O que há, André?

 

– Vim do médico. Estou me sentindo mal. Doente de
verdade.

 

– Vá para casa e descanse…

 

– Um dia não basta, o médico me recomendou repouso
absoluto. Meu coração não está funcionando bem. Perigo
dum enfarte.

 

– Na sua idade? Vou lhe dar um cartão, vá ao meu
médico.

 

Recusei o cartão:

 

– Pode não haver perigo, mas o fato é que estou doente.
– Alterei a voz: – Muito doente, em péssimo estado.

 

– O que você quer?

 

– Férias.

 

– Duas férias neste ano?

 

– Por favor, seu Galvão, me dê férias. Não gozarei as
do próximo ano, certo?

 

Tiveram de arranjar às pressas um redator substituto e
assim me livrei do trabalho durante vinte dias úteis. Quinze
dias úteis, pois no sábado Glória não freqüentava o tal
casarão amarelo.

 

Voltei com mais sossego à firma “Biancamano e
sobrinho”. Desta vez, fui logo para a janela e pedi ao
rapaz que fosse me trazendo as peças. Uma das janelas do
casarão estava fechada. Vi uma velha passar com qualquer
coisa nas mãos que me pareceu um bolo. Um menino brincava no
chão.

 

– Já escolheu? – perguntou o moço.

 

– Não! – berrei.

 

Biancamano sobrinho afastou-se, creio que irritado. Em
seguida, o próprio Biancamano aparecia para atender-me,
velhote simpático, tipo Gepeto, de cabelos grisalhos, porém
desconfiado em relação à minha pessoa.

 

– O senhor está indeciso… – observou. – Eu o ajudo.
Vamos ver essas peças. Não gosta da Aurora? Este Maracanã
é especial, o padrão mais procurado.

 

Glória! Vi Glória pela primeira vez cruzar a sala do
casarão, com os braços abertos, como se fosse abraçar
alguém. Debrucei-me na janela num salto.

 

– Um helicóptero! – bradei ao velho.

 

– O quê?

 

– Passou um helicóptero.

 

O velho me olhou dum jeito esquisito. Atrás dele, o
sobrinho, a alguma distância, me observava, irritado. Voltei
a examinar as fazendas.

 

– Que marca é essa? – perguntei, apontando o dedo para
qualquer uma.

 

– Qual?

 

– Quero um tropical brilhante.

 

– Este é tropical brilhante.

 

– Mas não é inglês, vê-se.

 

– Claro que é inglês.

 

Trazia o dinheiro das férias no bolso. Resolvi, enfim,
fazer um terno, não de fazenda estrangeira, mas da nacional,
e das mais baratas, isso já no fim da tarde. Há três horas
e meia que eu me plantei diante da janela.

 

O Sr. Biancamano começou a tirar as medidas. Havia uma
sala especial para isso. Ao ver a sala, protestei:

 

– Aqui não fico.

 

– Por quê?

 

– Sofro de claustrofobia. Vamos para a janela.

 

O velho era rápido demais na tarefa de tirar medidas ou o
tempo voava enquanto eu fixava o casarão amarelo. Em dois
minutos, tudo anotado. Dei-lhe o dinheiro da entrada. Muito
caros os ternos do Sr. Biancamano.

 

– O senhor está livre – disse ele.

 

Mas eu não queria ir embora! Ia gastar cinqüenta mil
cruzeiros, para ser posto fora da alfaiataria, do meu querido
posto de observação?

 

– Não é melhor tirar as medidas novamente?

 

– Nunca erro.

 

– Ninguém é infalível.

 

– Seu corpo é normal. Se fosse um Chico Bóia…

 

Eu me recusava a sair de lá. Já vira a velha outra vez.
A criança corria pela sala. Alguém ligara o rádio. Claro
que não podia ir embora! Olhando pela janela, perguntei ao
alfaiate:

 

– O senhor tem saudades da Itália?

 

– Nunca estive lá, sou apenas filho de italianos.

 

– De que província eram seus pais, Sr. Biancamano? Sabe
que em Piza há uma torre torta? Já leu a autobiografia de
Raquel Mussolini? Já leu Malaparte, Sr. Biancamano? O senhor
com certeza gosta de talharine, não é verdade? Qual é a
melhor cantina que existe em São Paulo? Já sonhou com Gina
Lolobrigida inteiramente nua, trabalhando na cozinha? Acha
que o comunismo dominará a península, velho Gepeto? Como é
o nome de sua excelentíssima esposa?

 

Queria travar amizade com ele, tornar-me seu íntimo,
negociar a compra daquela janela no crediário, mas ele era
homem muito ocupado. Além disso, por azar, mãos cruéis
fecharam as janelas do casarão.

 

Voltei à alfaiataria no dia seguinte.

 

– A prova não está pronta – informou-me o acre sobrinho
do Sr. Biancamano, que já devia odiar-me.

 

– Não faz mal, eu estava só passando por aqui… Como é
que vai o senhor seu tio? – Dirigi-me à janela. Pedi a um
aprendiz que me fosse buscar um café. Fiquei uma hora e meia
diante da janela, ignorando o interior da alfaiataria. Se me
perguntavam coisas, não respondia. Às seis, um Austin parou
diante do casarão amarelo e dele desceu um homem com cara de
chave-inglesa. Não era o Austin que vira Glória dirigir?

 

– Vamos fechar – disse-me o nervoso sobrinho de
Biancamano.

 

Tive de retirar-me, com cara feia. Era sexta e só na
segunda poderia voltar ao meu posto de observação.

 

Na semana seguinte, ao entrar na alfaiataria, o próprio
Biancamano me deu uma notícia terrivelmente desagradável.

 

– A primeira prova, senhor.

 

– Já? – escandalizei-me.

 

– Mas o senhor não está com pressa?

 

– Quem lhe disse que estou com pressa?

 

– O senhor tem passado a tarde toda aqui…

 

– O senhor se engana, meu amigo, não tenho pressa alguma.
O que eu quero é um serviço bem feito.

 

– Mas a prova está pronta.

 

Choveu muito aquela tarde e as janelas do casarão não se
abriram. Na terça só uma janela abriu. Nesses dois dias, eu
via o dono da alfaiataria trabalhando em minha roupa. Um
ajudante costurava uma manga. Tentei distrair o rapaz com uma
conversa sobre futebol para que se atrasasse. Quando ele
terminou a manga, chamei o Sr. Biancamano em particular e lhe
disse que o ajudante “matara” o serviço. Que
fizesse a manga de novo.

 

Na quarta, a segunda prova ficou pronta. Notei que queriam
terminar a minha roupa o mais depressa possível. Então
passei a conversar com o Sr. Biancamano e o ajudante, visando
impedir que corressem tanto. Contei, inclusive, o que nunca
fiz, uma série de anedotas pornográficas. Na quinta vi de
novo o Austin parar diante do casarão. Que ligação o dono
do carro teria com Glória? Meu Deus, era ela quem surgia à
janela e sorria para o homem de cara de chave-inglesa.

 

– Pode vestir.

 

O Sr. Biancamano tinha as calças e o paletó nas mãos.

 

– Hoje?

 

– Está pronto. Vá ao vestiário.

 

– Sofro de claustrofobia, já disse. Me visto aqui mesmo.

 

Diante da janela, vesti o terno novo, sempre a olhar para
fora. Um dos ajudantes foi postar-se ao meu lado, como se
quisesse descobrir o que eu espiava. Desajeitado, abotoei as
calças. Glória não estava mais na janela.

 

Com dor no coração, paguei o feitio do terno e tive de
me despedir do velho Gepeto. Mas na sexta eu voltava com uma
reclamação: o terno não caía bem. Queria uma reforma. O
alfaiate obrigou-me a ficar uma hora diante do espelho para
provar que me enganara.

 

– O corte está ótimo.

 

– Não dá para encompridar as calças?

 

– Para pisar nelas?

 

– As mangas estão curtas.

 

– Não estão.

 

– Veja que estão.

 

O Sr. Biancamano fechou a cara:

 

– Nunca tivemos um freguês como o senhor… Já nos
aborreceu demais por causa deste terninho. Recuso-me a
reformá-lo.

 

Fui tão descarado que ainda segui até a extremidade da
sala para dar uma última olhada pela janela. Depois, saí,
pisando firme, irritado, sem despedir-me. Na porta, gritei:

 

– Carcamanos ladrões!

 

Sofri uma crise de nervos no hotel ao ter plena
consciência de que perdera meu posto de observação. O que
eu descobrira naqueles oito dias? Praticamente nada: que um
homem, dono dum Austin, freqüentava o casarão amarelo. Mas
que relação havia entre ele e a minha adorada Glória de
peitos redondos?

 

Voltei a percorrer as redondezas do casarão. Com saudade
via a placa “Biancamano e sobrinho – alfaiate”. Mas
tive felizmente outra idéia: ao lado da alfaiataria havia
uma janelinha com uma velha tabuleta: “Pensão Estrela –
comida caseira”. A pensão, porém, não servia
refeições depois das duas horas. Teria de freqüentá-la
por outras razões.

 

Numa tarde, aparentemente tranqüilo, subi as escadas da
“Pensão Estrela”. Um cheiro de comida azeda era a
sua marca registrada, o cheiro que teria de suportar muitas
vezes ainda. Uma velhinha, embrulhada num xale, recolhia
pratos e talheres de pequenas mesas. Um rapaz manco varria.
Segui delicadamente para a janela. Lá estava o casarão
amarelo. Era como se eu tivesse sentado no cinema numa das
filas laterais. A visão, inferior à da alfaiataria, mas
também boa. Vi pessoas se movimentarem; Glória estaria
entre elas, porém não a distinguia. Debrucei-me no
peitoril.

 

– O que o senhor quer?

 

Voltei-me e vi a velhinha. Devo tê-la fuzilado com o
olhar, pois a coitada assustou-se. Meu primeiro impulso foi o
de contar-lhe tudo. Talvez pudesse compreender. Tratei de
ganhar tempo…

 

– A senhora…

 

– Sou a dona da pensão.

 

– Ainda servem refeições? – Eu planejava puxar uma das
mesas para perto da janela.

 

A velhinha me olhou como se estivesse diante dum imbecil.
Não percebia que já limpavam as mesas?

 

– Às duas fechamos a cozinha. O senhor chegou tarde.

 

Tarde? Chegara na hora. Olhei novamente pela janela. Vi
claramente Glória brincando com a criança. Seria seu filho?
Quem sabe tinha um filho, sem que a família soubesse, e
estava cuidando dele naquela casa? Hipótese viável.

 

– Não vim para comer – disse.

 

– O quê?

 

– Como em restaurantes, de preferência franceses. A
comida daqui é limpa? Quantas calorias a senhora põe à
mesa? – Pensei em fazer-me de fiscal, mas tive pena de
assustar a velhinha.

 

A pobre empalideceu: a cozinha não devia ser limpa.

 

– Somos até muito… – Olhou ao redor, procurando
auxílio. E o auxílio veio: o marido da velhinha, magrela,
de cabelos ralos, pele muito branca, olhinhos vivos.

 

– Não sou fiscal – fui dizendo.

 

Os dois se entreolharam. Ele, mais coraaw6kxo, falou:

 

– Já vieram diversos fiscais aqui, nunca encontraram nada
errado. Estamos estabelecidos há muitos anos.

 

Pus-lhe a mão no ombro, querendo ser simpático.

 

– Já disse que não sou fiscal.

 

– O senhor trabalha em?

 

– Imóveis. A minha é a Imobiliária São Lucas. Estamos
muito interessados neste conjunto.

 

O casal foi atingido por um raio.

 

– O senhor quer comprar? Não somos os donos.

 

– Sei disso.

 

– Estamos aqui há vinte anos.

 

– Vinte e dois – ela corrigiu como se fosse esse um grande
argumento.

 

– Vim para ver se o conjunto é de nosso agrado – disse,
encostando-me à janela. Glória ainda brincava com a
criança sob um feixe de luz do sol. – O prédio, sem dúvida
é bom. Uma rua muito central. Condução farta. Acho que
vamos fazer uma oferta ao dono…

 

– Quer dizer que teremos de sair?

 

A paixão me tornava cínico e mau:

 

– Se comprarmos, não haverá outro remédio, minha
senhora…

 

– Já falaram com o proprietário? quis saber o velhinho,
aflito.

 

– Ainda não.

 

A conversa, pausada, me favorecia. Agora Glória brincava
com o menino no ângulo da outra janela. Estava bonita num
vestido azul. O garoto dava gritos.

 

– Se o senhor comprar, quanto tempo teremos para…

 

– Com um bom advogado vocês se agüentam seis meses.

 

– Advogado? Nós? Impossível.

 

A velhinha segurou-me o braço. As mulheres sempre
entregam os pontos antes:

 

– Meu senhor, esta pensão não dá nada. Ninguém gosta
de subir dois andares para comer. Se vamos vivendo é porque
o aluguel é antigo. Saindo daqui, não poderemos abrir
pensão noutro lugar.

 

Era um drama, eu reconhecia. Senhores deputados: nunca
revoguem a lei do inquilinato. Protejam os aluguéis antigos,
principalmente os velhinhos que pagam aluguéis antigos. Era
um drama, sim, mas eu também tinha o meu drama.

 

– Gosto deste trecho da cidade – disse. – O ar aqui é
excelente. Dizem que faz bem aos pulmões.

 

Os velhinhos nunca tinham ouvido dizer isso. Ar excelente
o duma rua central, intoxicado pela fumaça de cem mil
ônibus? Era uma novidade de estarrecer.

 

– A Imobiliária pretende comprar para quê?

 

– Temos um cliente em vista. Um iogue. Sabem o que é um
iogue? É um hindu que pretende dar aulas não sei de quê.
É um homem muito famoso, amigo íntimo de Kennedy e de sua
elegante esposa.

 

Fiquei com nojo de mim mesmo ao contemplar o casal de
velhinhos ameaçados de despejo. Nunca mais teriam sua e sem
ela estariam condenados. Não possuíam filhos nem parentes.
Trágico. Ah, o Austin parava na porta do casarão.

 

– O senhor vai fazer uma péssima compra – disse o velho.

 

Como dar atenção aquele idiota? Precisava ver quem
dirigia o Austin. Creio que se tratava do homem de cara de
chave-inglesa.

 

Aqui há ratos – balbuciou a velha. – Ratos enormes.

 

– O hindu tem uma coleção de ratoeiras que ganhou dum
marajá

 

Foi a vez do marido.

 

– O prédio está caindo aos pedaços. Por que a
Imobiliária não compra um conjunto novo?

 

– Acho que esse me convém – respondi. – Agrada-me o
panorama e o hindu também vai gostar.

 

O velhinho espiou pela janela:

 

– Que panorama?

 

A velhinha ajuntou-se a ele:

 

– Daqui só se vêem prédios velhos.

 

O panorama, de fato, era horrível.

 

– Para muitos – expliquei – o feio é o belo.

 

– O senhor disse?

 

– O feio é o belo – gritei.

 

Para disfarçar um pouco minha intenção, passei pela
sala. O conjunto era pouco maior que o do alfaiate, mas
parecia ainda maior porque não possuía divisões. Andei
duma extremidade à outra, medindo os passos. Quantos metros
de largura e quantos de comprimento? Olhei o teto.

 

– Tem boa altura.

 

– Isso tem, mas é tão feio! Não entendo como o senhor
pode gostar.

 

– Estou apaixonado pelo conjunto – confessei.

 

E havia mesmo a marca da paixão em mim. Enquanto andava,
os velhinhos me seguiam. Há anos temiam que surgisse um
comprador para o conjunto, o que representaria o fim deles.
Ao voltar à janela, o Austin engatava a primeira. Não pude
ver se Glória ia nele.

 

– Voltarei amanhã – despedi-me.

 

Na tarde seguinte, entrei na “Pensão Estrela” e
me coloquei diante da janela. Trazia uma novidade: um
binóculo. Apenas uma das janelas do casarão amarelo estava
entreaberta. Não dava para ver nada.

 

– Ah, é o senhor?

 

Era o dono da pensão.

 

– Aprecio o panorama.

 

– Quer ver como está a cozinha? O encanamento estourou.

 

O que eu tinha com isso?

 

– Não sou encanador, meu amigo.

 

– O encanamento do prédio está podre. O senhor terá de
se aborrecer muito para…

 

– Isso não é comigo, é com o hindu.

 

A velhinha entrou em cena: devia ter envelhecido mais uns
cinco anos naquela noite. Tentou sorrir para subornar-me.

 

– Quer bolinhos? – perguntou.

 

Eu não almoçara. Há dias que não almoçava direito.
Aceitei os bolinhos, que vieram num pires. Preguei os olhos
no casarão amarelo, tão grande e misterioso.

 

O dono do estabelecimento avizinhou-se com ar sutil:

 

– Há muitos conjuntos melhores nesta rua…

 

Com o binóculo eu via algo mover-se dentro do casarão
amarelo.

 

– Quem mora nessa casa? – perguntei.

 

– Não sabemos, não nos damos com vizinhos.

 

Mais uma esperança que eu perdia. Tive ódio do velho e
da velha. Todos os velhos se interessam pela vida dos
vizinhos, menos eles.

 

– Quer mais bolinhos?

 

A velha lutava para conquistar minha simpatia. Arrastou-me
para a cozinha e mostrou-me a pia toda quebrada, os ladrilhos
soltos, as portas sem trinco. Como eu entregaria ao hindu o
conjunto naquelas condições? Eu já pensara no custo da
reforma?

 

– A senhora não conhece os hindus. Eles não ligam para
essas coisas… Vêm de um país ainda mais pobre do que o
nosso. Mas se acalme, a compra ainda não foi feita. Estou
apenas observando, amanhã eu volto.

 

No outro dia fui encontrar os velhos com uma folha de
papel escrita a lápis. Eram endereços de conjuntos daquela
e de ruas próximas que poderiam interessar à Imobiliária.
Todos muitos bons, bem conservados. Um deles apresentava uma
vantagem: não tinha inquilinos. O próprio dono da pensão
se incumbira de organizar a lista, percorrendo o bairro com
sua velhice e seu reumatismo.

 

– Minha imobiliária tem métodos diferentes de trabalho –
expliquei. – Não interessa a ela o conjunto em si,
entenderam?, e sim a visão exterior, o que se descortina da
janela.

 

Os velhinhos não entendiam isso:

 

– Esse prédio mais cedo ou mais tarde será derrubado…

 

– Que derrubem. O problema é do hindu.

 

Aí assisti a uma cena tocante: a velhinha atirou-se no
meu ombro e começou a chorar. Suas lágrimas me molhavam a
roupa. Disse que o marido passara a noite em claro. Se
tivessem de abandonar o prédio, seria preferível a morte.

 

– Não compre, senhor – ela implorou.

 

– Por favor, não chore assim.

 

– Somos velhinhos, não vê?

 

Abracei a velhinha. Eu também tive mãe, avó e tias
velhas. Não podia torturar mais aquela gente. Acariciei-lhe
os cabelos brancos, enxuguei-lhe as lágrimas com meu lenço.

 

– Está certo, não compro.

 

– Muito obrigado, meu filho – ela agradeceu, tão feliz.

 

O marido ouvira o fim do diálogo e estava radiante.

 

– Apenas queria que me deixassem apreciar um pouco mais o
panorama. Sou pintor nas horas vagas e me fascinam essas
casas velhas.

 

Permitiram generosamente. Pus o binóculo nos olhos. Cinco
minutos depois, vi o Austin parar diante do casarão.
Glória, radiante e fresca, saiu à porta. Empalideci.

 

– O que sucede? – a velha quis saber.

 

Não me contive: diante dos velhos estupefatos, corri para
a porta como um doido. No corredor, topei com o Sr.
Biancamano, que entrava. Quase o atirei no chão. Desci as
escadas de três em três degraus. Ao chegar à rua, o carro
já partira.

 

No dia seguinte não pude voltar ao meu posto de
observação: seria descaramento demais. Vaguei pela cidade
feito um possesso: em todas as mulheres descobria semelhança
com Glória. E não podia ver um Austin sem me pôr a tremer
dos pés à cabeça. Sentado num bar, bebericando uma
cerveja, lembrei-me de consultar o Dr. Machado.

 

Já o conhecia e precisava dum psicanalista, um médico
como o Dr. Machado, com quem tivesse franca liberdade de
confessar os meus problemas. Só um médico poderia salvar-me
da loucura.

 

Entrei no consultório com ar apalermado. Larguei-me numa
poltrona, olhando o médico. Era eu quem fazia perguntas:

 

– Que idade tem, doutor?

 

– Quarenta e dois.

 

– Casado?

 

– Casei-me recentemente.

 

– Já amou desesperadamente? Ou melhor, sabe o que é uma
dor de cotovelo? Sinceridade, doutor.

 

Ele interessou-se pelo meu caso. Era homem sensível e
até há pouco fora um solteirão. Amara uma enfermeira.
Moça feia e sem graça, mas a amara sem limites. Contei-lhe
o meu caso, inclusive os episódios da alfaiataria e da
“Pensão Estrela”. Ouvia atento.

 

– Que imaginação o senhor tem! – disse em tom de elogio.

 

– Ela é que me mata. O que devo fazer, doutor, para me
livrar disso?

 

Dr. Machado passeou pela sala. Disse:

 

– Em primeiro lugar, sexo aplacado. Se puder ter
relações sexuais duas vezes por dia, muito melhor. Era o
que eu fazia para me esquecer de Helena. O melhor caminho é
enjôo da carne feminina.

 

Eu entendia.

 

– Deu resultado no seu caso?

 

Dr. Machado largou-se numa poltrona:

 

– Não.

 

Engraçado: como dava um conselho ciente de que não
obteria resultado?

 

– O que o senhor fez depois?

 

Dr. Machado, sem olhar-me, recordava. As lembranças
davam-lhe prazer e dor ao mesmo tempo.

 

– Um dia me meti num cargueiro. Prendi-me num cargueiro,
entendeu? Fui dar na Argentina. Um mês na Argentina,
bebendo, correndo atrás de mulheres e dançando tango.
Quando voltei, Helena havia-se mudado para o Norte.

 

Arrependi-me de consultar aquele médico. Ele não me
abria nenhuma porta para a fuga a não ser a de um
melancólico cargueiro rumo à Argentina.

 

Levantando, anunciei:

 

– Tive uma idéia: já que perdi meus postos de
observação, vou alugar um Volkswagen e estacioná-lo diante
do casarão amarelo. Ficarei lá dia e noite até descobrir
algo.

 

Para minha surpresa, o médico achou a idéia excelente:

 

– Isso não me ocorreu em relação a Helena. Parabéns.

 

– O que o senhor disse?

 

– Parabéns.

 

Mais animado, decidi:

 

– Começo já.

 

Na porta, Dr. Machado, jeitosamente, me perguntou:

 

– Onde fica esse casarão amarelo?

 

Num Self-Drive aluguei um Volks velho, vesti uma capa de
chuva, pus óculos pretos e parti para o casarão. Levava
sanduíches, bolachas, empadinhas, como se fosse fazer um
piquenique. Ah, e o litro… o litro era indispensável
porque ninguém pode ficar muitas horas sem urinar.

 

É estranha a sensação de ter de permanecer horas e
horas num carro parado. Deve ser mais agradável percorrer a
Belém-Brasília, dando vivas a JK. Uma rua é monótona
sempre, por mais movimentada que seja. O pior era quando a
noite caía. No primeiro dia vi Glória entrar no casarão e
só sair de madrugada. Estava tão cansado, que dormi dentro
do carro. Acordei cedo, com a rua iluminada. Ao meio-dia o
Austin parou na frente do meu Volks. O homem de cara de
chave-inglesa saiu, levando u’a mala. Pude vê-lo mais de
perto: era antipático, porém bem vestido. Nesse dia, só me
distraí um pouco quando Glória saiu, apanhou um táxi e foi
para o apartamento da tia. Assim, dirigindo dois
quilômetros, desenferrujei os músculos. Ela dormiu no
apartamento, mas logo cedo recebeu a visita do homem do
Austin. Imaginei que o fulano estava convencendo a tia a
deixar Glória viver com ele.

 

Nessa noite acabaram-se minhas provisões: comprei mais
sanduíches, empadas, pastéis e amendoins. Comprei revistas
e um livro policial. À tarde, tive fortes dores nas pernas.
Felizmente Glória saiu e pude mexer-me, acompanhando-a, no
Volks, até o maldito casarão amarelo.

 

Para minha surpresa, no começo da noite o Dr. Machado
pôs a cara na janela do meu carro.

 

– Novidades?

 

– Dr. Machado!

 

– Posso entrar?

 

Entrou e ficou comigo até às dez horas. Nesse tempo,
contou-me com minúcias o seu caso com a enfermeira. Se na
ocasião tivesse tido a idéia do Self-Drive, descobriria com
quem Helena o traía. Ao ver o litro, felicitou-me e teceu
novos elogios à minha imaginação.

 

O dia seguinte era sábado e o Dr. Machado voltou. Disse
que dispunha de mais tempo.

 

– Que tal este posto de observação? – perguntou.

 

– Oferece algumas vantagens sobre a alfaiataria e a
pensão. Pode funcionar nos sábados e domingos e a qualquer
hora.

 

– É verdade – confirmou Dr. Machado. – Mas o que apurou
até agora?

 

– Acho que nada.

 

– Persista.

 

Eu e o Dr. Machado não tirávamos os olhos da porta do
casarão. Observei que se impressionara demais pelo meu caso
e revivia através dele o seu próprio drama de ciúme.
Estava fazendo o tempo recuar. Para ele, quem estava no
casarão não era Glória e, sim, a sua Helena enfermeira, e
excitava-se.

 

– Lá vem o Austin – informou-me, mais vigilante do que eu
mesmo. – Não se distraia, rapaz.

 

Bem me haviam prevenido de que todos os psicanalistas são
doidos! Só um louco é capaz de se interessar tanto pela
loucura alheia. Com um médico desses, eu não podia ficar
curado.

 

– É uma visita rápida, logo o homem sai.

 

O Dr. Machado ficou comigo mais de uma hora, depois
despediu-se. No domingo, voltaria para ajudar-me. Homem de
palavra, voltou mesmo. Trouxe frutas. Sentou-se ao meu lado e
quase não conversava, com os olhos no casarão.

 

– Como estou cansado – lamentei.

 

– Agüente firme.

 

– Quatro dias que estou dentro deste Volks.

 

Ele não se comovia com meu aspecto físico. Queria a
solução do problema. O homem do Austin seria amante da
moça? E quem era aquela criança? Num momento em que o
menino saiu à porta, o Dr. Machado examinou com o binóculo.
Também desconfiava de que fosse filho de Glória. Quando
não tinha assunto, o médico roía as unhas e fazia
cacoetes.

 

Na segunda-feira ele reapareceu com um amplo sorriso:

 

– Sabe que amanhã é feriado?

 

– E daí?

 

– Podemos ficar o dia inteiro, observando.

 

Eu podia suportar a minha própria loucura, mas suportar
também a loucura dos outros era demais. Além disso, tinha
ciúme do Dr. Machado. Por que se interessava tanto pela
minha Glória?

 

Apesar da irritação que se apossava de mim, senti-me
mais satisfeito no feriado com a companhia do Dr. Machado.
Era melhor do que a solidão. Ele me confortava, lembrando o
sacrifício dos astronautas dentro de pequenas celas. Para
reanimar-me, aplicou-me uma injeção de não sei que no
braço. Mas o tempo todo olhava para o casarão amarelo.

 

– Lá vai ela! – exclamei.

 

– Vamos segui-la! – bradou o médico.

 

Glória apanhou um táxi, mas a minha perseguição não
foi longa. Os músculos emperrados me fizeram dirigir sem
perícia e fui esbarrar num pesado caminhão. Nem quero
contar o aborrecimento que isso causou a mim e ao Dr.
Machado.

 

Devolvi o carro amassado ao Self-Drive. O proprietário do
estabelecimento estranhou que em oito dias eu só rodasse
sete quilômetros. Acusou-me de ter alterado o marcador para
não pagar o excesso. Não pude convencê-lo do contrário.

 

A grande desgraça era a chegada do fim das minhas
férias. Como voltar ao trabalho se meu ciúme me ocupava
tempo integral, com horas extras e sem descanso aos sábados
e domingos? Desnorteado, procurava Dr. Machado em seu
consultório. Deixava, afoito, qualquer cliente para
atender-me. Costumava consolar-me assim:

 

– Você não conquistou a pequena, mas está vivendo

 

grandes emoções.

 

Isso não me consolava, o que eu queria eram novas idéias
que me ajudassem a solucionar o mistério do casarão
amarelo. Dia e noite quebrava a cabeça à procura de outro
caminho. Mas sejamos justos: o Dr. Machado me ajudou nesse
trabalho.

 

Finalmente, juntos, tivemos outra idéia, ousada,
coraaw6kxa, terrível. Vou entrar no casarão amarelo. Repito,
se quiserem! Vou entrar no casarão amarelo! Como? Sobre a
minha cama, muito bem passado e limpo está um uniforme de
bombeiro. Só Deus sabe com que sacrifício o consegui.
Vestido de bombeiro e com um enorme bigode Glória não vai
me reconhecer. Na verdade, não pensei ainda no pretexto para
entrar na casa. É um detalhe sem importância. Inventarei na
hora qualquer coisa. Farei ao homem da cara de chave-inglesa,
à velha, ao menino e à Glória uma preleção contra os
fogos de artifício, já que o mês de junho esta aí.
Também não inventei uma estória antes de entrar na
alfaiataria e na “Pensão Estrela”.

 

O próprio Dr. Machado gentilmente se ofereceu para
levar-me em seu carro até a porta do casarão amarelo. Ficou
na rua à espera dos resultados. Homem humaníssimo bem sabe
quando dói uma dor de cotovelo. Despedi-me dele como quem
parte para uma guerra. Em meu uniforme de bombeiro cheguei
até à porta. Dr. Machado me fez sinal para ajeitar o
quepe… Parei um instante, mas prossegui. Comecei a subir os
degraus da casa com emoção. A primeira pessoa que vi foi o
menino:

 

– Glorinha, tem um “sordado” aí…

 

 

This story was published under the original title of
“O Casarão Amarelo” in O Enterrro da
Cafetina
, a collection of Marcos Rey’s short stories,
by Civilização Brasileira publishing company.

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