The Pronoun Craftsman

The Pronoun 
Craftsman

One month later, solemnly, the youngster was married
to the leftover sister. Eleven months afterwards, there he was squalling
in the midwife’s hands the future professor Aldrovando, the conspicuous
language connoisseur who for 50 long years would scratch on the grammar
his incurable philological scabies.
By Monteiro Lobato

Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática.

Durante sessenta anos de vida terrena pererecou como um peru em cima
da gramática.

E morreu, afinal, vítima dum novo erro de gramática.

Mártir da gramática, fique este documento da sua vida
como pedra angular para uma futura e bem merecida canonização.

Havia em Itaoca um pobre moço que definhava de tédio no
fundo de um cartório. Escrevente. Vinte e três anos. Magro.
Ar um tanto palerma. Ledor de versos lacrimogêneos e pai duns acrósticos
dado à luz no "Itaoquense", com bastante sucesso.

Vivia em paz com as suas certidões quando o frechou venenosa
seta de Cupido. Objeto amado: a filha mais moça do coronel Triburtino,
o qual tinha duas, essa Laurinha, do escrevente, então nos dezessete,
e a do Carmo, encalhe da família, vesga, madurota, histérica,
manca da perna esquerda e um tanto aluada.

Triburtino não era homem de brincadeiras. Esgoelara um vereador
oposicionista em plena sessão da Câmara e desde aí,
se transformou no tutu da terra. Toda a gente lhe tinha um vago medo; mas
o amor, que é mais forte que a morte, não receia sobrecenhos
enfarruscados, nem tufos de cabelos no nariz.

Ousou o escrevente namorar-lhe a filha, apesar da distância hierárquica
que os separava. Namoro à moda velha, já se vê, que
nesse tempo não existia a gostosura dos cinemas. Encontros na igreja,
à missa, troca de olhares, diálogos de flores—o que havia
de inocente e puro. Depois, roupa nova, ponta de lenço de seda a
entremostrar-se no bolsinho de cima e medição de passos na
Rua D’Elba, nos dias de folga. Depois, a serenata fatal à esquina,
com o

Acorda, donzela…

sapecado a medo num velho pinho de empréstimo. Depois, bilhetinho
perfumado.

Aqui se estrepou…

Escrevera nesse bilhetinho, entretanto, apenas quatro palavras, afora
pontos exclamativos e reticências:

Anjo adorado!

Amolhe!…

Para abrir o jogo, bastava esse movimento de peão.

Ora, aconteceu que o pai do anjo apanhou o bilhetinho celestial e, depois
de três dias de sobrecenho carregado, mandou chamá-lo à
sua presença, com disfarce de pretexto—para umas certidõezinhas,
explicou.

Apesar disso o moço veio um tanto ressabiado, com a pulga atrás
da orelha.

Não lhe erravam os pressentimentos. Mal o pilhou portas aquém,
o coronel trancou o escritório, fechou a carranca e disse:

—A família Triburtino de Mendonça é a mais honrada
desta terra, e eu, seu chefe natural, não permitirei nunca—nunca,
ouviu? que contra ela se cometa o menor deslize. Parou. Abriu uma gaveta.
Tirou de dentro o bilhetinho cor de rosa, desdobrou-o.

—É sua esta peça de flagrante delito?

O escrevente, a tremer, balbuciou medrosa confirmação

—Muito bem! continuou o coronel em tom mais sereno. Ama, então,
minha filha e tem a audácia de o declarar… Pois agora…

O escrevente, por instinto, ergueu o braço para defender a cabeça
e relanceou os olhos para a rua, sondando uma retirada estratégica.

—…é casar! concluiu de improviso o vingativo pai.

O escrevente ressuscitou. Abriu os olhos e a boca, num pasmo. Depois,
tornando a si, comoveu-se e, com lágrimas nos olhos, disse, gaguejante:

—Beijo-lhe as mãos, coronel! Nunca imaginei tanta generosidade
em peito humano! Agora vejo com que injustiça o julgam aí
fora!…

Velhacamente o velho cortou-lhe o fio das expansões.

—Nada de frases moço, vamos ao que serve: declaro-o solenemente
noivo de minha filha!

E voltando-se para dentro, gritou:

—Do Carmo! Venha abraçar o teu noivo!

O escrevente piscou seis vezes e, enchendo-se de coragem, corrigiu o
erro.

—Laurinha quer o coronel dizer…

—Sei onde trago o nariz, moço. Vassuncê mandou este bilhete
à Laurinha dizendo que ama-"lhe". Se amasse a ela deveria
dizer amo-"te". Dizendo "amo-lhe" declara que ama a
uma terceira pessoa, a qual não pode ser senão a Maria do
Carmo. Salvo se declara amor à minha mulher!…

—Oh, coronel…

—…ou à preta Luzia, cozinheira. Escolha!

O escrevente, vencido, derrubou a cabeça, com uma lágrima
a escorrer rumo à asa do nariz. Silenciaram ambos, em pausa de tragédia.
Por fim o coronel, batendo-lhe no ombro paternalmente, repetiu a boa lição
da sua gramática matrimonial.

—Os pronomes, como sabe, são três: da primeira pessoa—quem
fala, e neste caso vassuncê; da segunda pessoa—a quem se fala, e
neste caso Laurinha; da terceira pessoa—de quem se fala, e neste caso Maria
do Carmo, minha mulher ou a preta. Escolha!

Não havia fuga possível.

O escrevente ergueu os olhos e viu do Carmo que entrava, muito lampeira
da vida, torcendo acanhada a ponta do avental novo ao alcance do maquiavélico
pai. Submeteu-se e abraçou a urucaca, enquanto o velho, estendendo
as mãos, dizia teatralmente:

—Deus vos abençoe, meus filhos!

No mês seguinte, solenemente, o moço casava-se com o encalhe,
e onze meses depois vagia nas mãos da parteira o futuro professor
Aldrovando, o conspícuo sabedor da língua que durante cinqüenta
anos a fio, coçaria na gramática a sua incurável sarna
filológica.

Até aos dez anos não revelou Aldrovando pinta nenhuma.
Menino vulgar, tossiu a coqueluche em tempo próprio, teve o sarampo
da praxe, mais a cachumba e a catapora. Mais tarde, no colégio,
enquanto os outros enchiam as horas de estudo com invenções
de matar o tempo—empapelamento de moscas e moidelas das respectivas cabecinhas
entre duas folhas de papel, coisa de ver o desenho que sai—Aldrovando apalpava
com erótica emoção a gramática de Augusto Freire
da Silva. Era o latejar do furúnculo filológico, que o determinaria
na vida, para matá-lo, afinal…

Deixemo-lo, porém, evoluir e tomemo-lo quando nos serve, aos
40 anos, já a descer o morro, arcado ao peso da ciência e
combalido de rins. Lá está ele em seu gabinete de trabalho,
fossando, à luz dum lampião, os pronomes de Filinto Elísio.
Corcovado, magro, seco, óculos de latão no nariz, careca,
celibatário impenitente, dez horas de aulas por dia, duzentos mil
réis por mês e o rim, volta e meia, a fazer-se lembrado.

Já leu tudo. Sua vida foi sempre o mesmo poento idílio
com as veneráveis costaneiras onde cabeceiam os clássicos
lusitanos. Versou-os um por um com mão diurna e noturna. Sabe-os
de cor, conhece-os pela morrinha, distingue pelo faro uma seca de Lucena
duma esfalfa de Rodrigues Lobo. Digeriu todas as patranhas de Fernão
Mendes Pinto. Obstruiu-se da broa encruada de Fr. Pantaleno do Aveiro.
Na idade em que os rapazes correm atrás das raparigas, Aldrovando
escabichava belchiores na pista dos mais esquecidos mestres da boa arte
de maçar. Nunca dormiu entre braços de mulher. A mulher e
o amor—mundo, diabo, carne, eram para ele os alfarrábios freiráticos
do quinhentismo, em cuja soporosa verborréia espapaçava os
instintos lerdos, como porco em lameiro.

Em certa época viveu três anos, acampado em Vieira. Depois
vagamundeou, como um Robínson, pelas florestas de Bernardes.

Aldrovando nada sabia do mundo atual. Desprezava a natureza, negava
o presente. Passarinho, conhecia um só: o rouxinol de Bernardim
Ribeiro. E se acaso o sabiá de Gonçalves Dias vinha bicar
"pomos de Hespérides" na laranjeira do seu quintal, Aldrovando
esfogueteava-se com apóstrofes:

—Salta fora, regionalismo de má sonância!

A língua lusa era-lhe um tabu sagrado que atingira à perfeição
com Fr. Luís de Sousa, e daí para cá, salvo lucilações
esporádicas, vinha chafurdando no ingranzéu barbaresco.

—A inglesia de hoje, declamava ele, está para a Língua,
como o cadáver em putrefação está para o corpo
vivo.

E suspirava, condoído dos nossos destinos:

—Povo sem língua!… Não me sorri o futuro de Vera-Cruz…

E não lhe objetassem que a língua é organismo vivo
e que a temos a evoluir na boca do povo.

—Língua? Chama você língua à garabulha bordalenga
que estampam periódicos? Cá está um desses galicígrafos.
Deletreemo-lo ao acaso.

—Teve lugar ontem!… É língua esta espurcícia
negral? Ó meu seráfico Frei Luís, como te conspurcam
o divino idioma, estes sarrafaçais da moxinifada!

— …no Trianon… Por que, Trianon? Por que este perene barbarizar
com alienígenos arrevezos! Tão bem ficava—a Benfica, ou,
se querem neologismo de bom cunho—o Logratório…Tarelos
é que são, tarelos!

E suspirava, deveras compungido.

—Inútil prosseguir. A folha inteira cacografa-se por este teor.
Ai! Onde param as boas letras de antanho? Fez-se peru o níveo cisne.
Ninguém atende a lei suma:—Horácio! Impera o desprimor, e
o mau gosto vige como suprema regra. A gálica intrujice é
maré sem vazante. Quando penetro num livreiro o coração
se me confrange ante o pélago de óperas barbarescas que nos
vertem cá mercadores de má mote. E é de notar, outrossim,
que a elas se vão as preferências do vulgacho. Muito não
faz que vi com estes olhos um gentil mancebo preferir uma sordícia
de Oitavo Mirbelo—Canhenho duma dama de servir, creio, à…
adivinhe ao quê, amigo? À Carta de Guia do meu divino
Francisco Manoel!…

—Mas a evolução…

—Basta. Conheço às sobejas a escolástica da época,
a "evolução" darwínica, os vocábulos
macacos—pitecofonemas que "evolveram", perderam o pêlo
e se vestem hoje à moda da França, com vidro no olho. Por
amor a Frei Luís, que ali daquela costaneira escandalizado nos ouve,
não remanche o amigo na esquipática sesquipedalice.

Um biógrafo ao molde clássico separaria a vida de Aldrovando
em duas fases distintas: a estática, em que apenas acumulou ciência,
e a dinâmica, em que, transferido em apóstolo, veio a campo
com todas as armas para contrabater o monstro da corrupção.

Abriu campanha com um memorável ofício ao congresso, pedindo
leis repressivas contra os ácaros do idioma.

—Leis, senhores, leis de Drácão, que diques sejam, e fossados,
e alcáçares de granito prepostos à defensão
do idioma. Mister sendo, a forca se restaure, que mais o baraço
merece quem conspurca o sacro patrimônio da sã vernaculidade,
que quem ao semelhante a vida tira. Vede, senhores, os pronomes, em que
lazeira jazem…

Os pronomes, ai! eram a tortura permanente do professor Aldrovando.
Doía-lhe como punhalada, vê-los por aí pré ou
pospostos contra regras elementares do dizer castiço. E sua representação,
alargou-se nesse pormenor, flagelante, concitando os pais da pátria
à criação dum Santo Ofício gramatical.

Os ignaros congressistas, porém, riram-se da memória,
e grandemente piaram sobre Aldrovando as mais cruéis chalaças.

—Quer que instituamos patíbulo para os maus colocadores de pronomes!
Isto seria autocondenar-nos à morte! Tinha graça!

Também lhe foi à pele a imprensa, com pilhérias
soezes. E depois, o público. Ninguém alcançara a nobreza
do seu gesto e Aldrovando, com a mortificação na alma, teve
que mudar de rumo. Planeou recorrer ao púlpito dos jornais. Para
isso mister foi, antes de nada, vencer o seu velho engulho pelos "galicífragos
de papel e graxa". Transigiu e, breve, desses "pulmões
da pública opinião", apostrofou o país com o
verbo tonante de Ezequiel. Encheu colunas e colunas de objurgatórias
ultraviolentas, escritas no mais estreme vernáculo.

Mas não foi entendido. Raro leitor metia os dentes naqueles intermináveis
períodos engrenados à moda de Lucena; e, ao cabo da aspérrima
campanha, viu que pregara em pleno deserto. Leramno apenas a meia dúzia
de Aldrovandos que vegetam sempre em toda a parte, como notas rezingüentas
da sinfonia universal.

A massa dos leitores, entretanto, essa permaneceu alheia aos flamívomos
pelouros da sua colubrina sem raia. E por fim os "periódicos"
fecharam-lhe a porta no nariz, alegando falta de espaço e coisas.

—Espaço não há para as sãs idéias,
objurgou o enxotado, mas sobeja, e pressuroso, para quanto recomende à
podriqueira!…Gomorra! Sodoma! Fogos do céu virão um dia
limpar-vos a gafa!… exclamou, profético, sacudindo à soleira
da redação o pó das cambaias botinas de elástico.

Tentou em seguida ação mais direta, abrindo consultório
gramatical.

—Têm-nos os físicos (queria dizer médicos), os doutores
em leis, os charlatães de toda a espécie. Abra-se um para
a medicação da grande enferma, a língua. Gratuito,
já se vê, que me não move amor de bens terrenos.

Falhou a nova tentativa. Apenas as moscas vagabundas vinham esvoejar
em torno da ciência que se oferecia na salinha modesta do apóstolo.
Criatura humana, uma só, sequer, ali não veio remendar-se
filologicamente.

Ele, todavia, não esmoreceu.

—Experimentemos processo outro, mais suasório.

E anunciou a montagem da "Agência de Colocação
de Pronomes e Reparos Estilísticos".

Quem tivesse um autógrafo a rever, um memorial a expungir de
cincas, um calhamaço a compor-se com os "afeites" do lídimo
vernáculo, fosse lá, que, sem remuneração nenhuma,
nele se faria obra limpa e escorreita.

Era boa a idéia, e logo vieram os primeiros originais necessitados
de ortopedia, sonetos a consertar pés de versos, ofícios
ao governo pedindo concessões, cartas de amor.

Tais, porém, eram as reformas que nos doentes operava Aldrovando,
que os autores não mais reconheciam suas próprias obras.
Um dos clientes chegou a reclamar:

—Professor, V. Sa. enganou-se. Pedi limpa de enxada nos pronomes, mas
não que me traduzisse a memória em latim…

Aldrovando ergueu os óculos para a testa:

—E traduzi em latim o tal ingranzéu?

—Em latim ou grego, pois que o não consigo entender…

Aldrovando impertigou-se.

—Pois, amigo, errou de porta. Seu caso é ali com o alveitar da
esquina.

Pouco durou a Agência, morta à míngua de clientes.
Teimava o povo em permanecer empapado no chafurdeiro da corrupção…

O rosário de insucessos, entretanto, em vez de desalentar, exasperou
o apóstolo.

—Hei de influir na minha época. Aos tarelos hei de vencer. Fogem-me
à férula, os maraus de pau e corda? Ir-lhes-ei empós,
filá-los-ei pela gorja… Salta rumor!

E foi-lhes "empós". Andou pelas ruas examinando dísticos
e tabuletas com vícios de língua. Descoberta a "asnidade",
ia ter com o proprietário, contra ele desfechando os melhores argumentos
catequistas.

Foi assim com o ferreiro da esquina, em cujo portão de tenda
uma tabuleta—"Ferra-se cavalos"—escoicinhava a santa gramática.

—Amigo, disse-lhe pachorrentamente Aldrovando, natural a mim que parece
que erres, alarve que és. Se erram paredros, nesta época
de ouro da corrupção…

O ferreiro pôs de lado o malho e entreabriu a boca.

—Mas da boa sombra do teu focinho espero, continuou o apóstolo,
que ouvidos me darás. Naquela tábua um dislate existe que
seriamente à lingua lusa ofende. Venho pedir-lhe, em nome do asseio
gramatical, que o expunjas.

— ? ? ?

—Que reformes a tabuleta, digo.

—Reformar a tabuleta ? Uma tabuleta nova, com a licença paga?
Está acaso rachada?

—Fisicamente, não. A racha é na sintaxe. Fogem, ali, os
dizeres à sã gramaticalidade.

O honesto ferreiro não entendia nada de nada.

—Macacos me lambam se estou entendendo o que V. Sa. diz…

—Digo que está a forma verbal com eiva grave. O "ferra-se"
tem que cair no plural, pois que a forma é passiva e o sujeito é
"cavalos".

O ferreiro abriu o resto da boca.

—O sujeito sendo "cavalos", continuou o mestre, a forma verbal
é "ferramse"—"ferramse cavalos!"

—Ah! respondeu o ferreiro, começo agora a compreender. Diz V.
Sa. que…

— …que "ferra-se cavalos" é um solecismo horrendo
e o certo é "ferram-se cavalos".

—V. Sa. me perdoe, mas o sujeito que ferra os cavalos sou eu, e eu não
sou plural. Aquele "se" da tabuleta refere-se cá a este
seu criado. É como quem diz: Serafim ferra cavalos—Ferra Serafim
cavalos. Para economizar tinta e tábua abreviaram o meu nome, e
ficou como está: Ferra Se(rafim) cavalos. Isto me explicou o pintor,
e entendi-o muito bem.

Aldrovando ergueu os olhos para o céu e suspirou.

—Ferras cavalos e bem merecias que te fizessem eles o mesmo!… Mas
não discutamos. Ofereço-te dez mil réis pela admissão
dum "m" ali…

—Se V. Sa. paga…

Bem empregado dinheiro! A tabuleta surgiu no dia seguinte dessolecismada,
perfeitamente de acordo com as boas regras da gramática. Era a primeira
vitória obtida e todas as tardes Aldrovando passava por lá
para gozar-se dela.

Por mal, porém, não durou muito o regalo. Coincidindo
a entronização do "m" com maus negócios
na oficina, o supersticioso ferreiro atribuiu a macaca à alteração
dos dizeres, e lá raspou o "m" do professor.

A cara que Aldrovando fez quando, no passeio desse dia, deu com a sua
vitória borrada! Entrou furioso pela oficina a dentro, e mascava
uma apóstrofe de fulminar, quando o ferreiro, às brutas,
lhe barrou o passo:

—Chega de caraminholas, ó barata tonta! Quem manda aqui, no serviço
e na língua, sou eu. E é ir andando, antes que eu o ferre
com um bom par de ferros ingleses!

O mártir da língua meteu a gramática entre as pernas
e moscou-se.

—"Sancta simplicitas!" ouviram-no murmurar na rua, de rumo
à casa, em busca das consolações seráficas
de Fr. Heitor Pinto. Chegado que foi ao gabinete de trabalho, caiu de borco
sobre as costaneiras venerandas e não mais conteve as lágrimas,
chorou…

O mundo estava perdido e os homens, sobre maus, eram impenitentes. Não
havia desviá-los do ruim caminho, e ele, já velho, com o
rim a rezingar, não se sentia com forças para a continuação
da guerra.

—Não hei de acabar, porém, antes de dar a prelo um grande
livro, onde compendie a muita ciência que hei acumulado.

E Aldrovando empreendeu a realização de um vastíssimo
programa de estudos filológicos. Encabeçaria a série
um tratado sobre a colocação dos pronomes, ponto onde mais
claudicava a gente de Gomorra.

Fê-lo, e foi feliz nesse período de vida em que, alheio
ao mundo, todo se entregou, dia e noite, à obra magnífica.
Saiu trabuco volumoso, que daria três tomos de 500 páginas
cada um, corpo miúdo. Que proventos não adviriam dali para
a lusitanidade! Todos os casos resolvidos para sempre, todos os homens
de boa vontade salvos da gafaria! O ponto fraco do brasileiro falar resolvido
de vez! Maravilhosa coisa…

Pronto o primeiro tomo—Do pronome Se—anunciou a obra pelos jornais,
ficando à espera da chusma de editores que viriam disputá-la
à sua porta. E por uns dias o apóstolo sonhou as delícias
da estrondosa vitória literária, acrescida de gordos proventos
pecuniários.

Calculava em oitenta contos o valor dos direitos autorais, que, generoso
que era, cederia por cinqüenta. E cinqüenta contos para um velho
celibatário como ele, sem família nem vícios, tinha
a significação duma grande fortuna. Empatados em empréstimos
hipotecários, sempre eram seus quinhentos mil réis por mês
de renda, a pingarem pelo resto da vida, na gavetinha onde, até
então, nunca entrara pelega maior de duzentos. Servia, servia!…
E Aldrovando, contente, esfregava as mãos, de ouvido alerta, preparando
frases para receber o editor que vinha vindo…

Que vinha vindo mas não veio, ai!… As semanas se passaram sem
que nenhum representante dessa miserável fauna de judeus surgisse
a chatinar o maravilhoso livro.

—Não me vêm a mim? disse ele. Salta rumor! Pois me vou
a eles!

E saiu em via sacra, a correr todos os editores da cidade. Má
gente! Nenhum lhe quis o livro sob condições nenhumas. Torciam
o nariz, dizendo: "Não é vendável"; ou:
"Por que não faz antes uma cartilha infantil aprovada pelo
governo?"

Aldrovando, com a morte nalma e o rim dia a dia mais derrancado, retesou-se
nas últimas resistências.

—Fá-la-ei imprimir à minha custa! Ah, amigos! Aceito o
cartel. Sei pelejar com todas as armas e irei até ao fim. Bofe!…

Para lutar era mister dinheiro e bem pouco do vilíssimo metal
possuía na arca o alquebrado Aldrovando. Não importa! Faria
dinheiro, venderia móveis, imitaria Bernardo de Pallissy, e não
morreria sem ter o gosto de acaçapar Gomorra sob o peso de sua ciência
impressa. Editaria, ele mesmo, um por um, todos os volumes da obra salvadora.

Passou esse período de vida alternando revisão de provas
com padecimentos renais. Venceu. O livro compôs-se, magnificamente
revisto, primoroso na linguagem como não existia igual.

Dedicou-o a Fr. Luís de Sousa:

À memória daquele que me sabe as dores—O autor.

Mas não quis o destino que o já trêmulo Aldrovando
colhesse os frutos de sua obra. Filho dum pronome impróprio, a má
colocação de outro pronome lhe cortaria o fio da vida.

Muito corretamente havia escrito na dedicatória :…daquele
que me sabe… e nem poderia escrever de outro modo um tão conspícuo
colocador de pronomes. Maus fados intervieram, porém—até
os fados conspiram contra a língua!—e, por artimanha do diabo que
os rege, empastelou-se na oficina esta frase. Vai o tipógrafo e
recompõe-na a seu modo… daquele que sabe-me as dores… E
assim saiu nos milheiros de cópias da avultada edição.

Mas não antecipemos.

Pronta a obra e paga, ia Aldrovando recebê-la, enfim. Que glória!
Construíra, finalmente, o pedestal da sua própria imortalidade,
ao lado direito dos sumos cultores da língua.

A grande idéia do livro, exposta no capítulo IV— Do
método automático de bem colocar os pronomes— engenhosa
aplicação duma regra mirífica, por meio da qual até
os burros de carroça poderiam zurrar com gramática operária
como o "914" da sintaxe, limpando-a da avariose produzida pelo
espiroqueta dos pronomococus.

A excelência dessa regra estava em possuir equivalentes químicos
de uso na farmacopéia alopata, de modo que a um bom laboratório
fácil lhe seria reduzi-la a ampolas para injeções
hipodérmicas, ou a pílulas, pós ou poções
para uso interno.

E quem se injetasse ou engolisse uma pílula do futuro PRONOMINOL
CANTAGALO curar-se-ia para sempre do vício, colocando os pronomes
instintivamente bem, tanto no falar como no escrever. Para algum caso de
pronomorréia aguda, evidentemente incurável, haveria o recurso
do PRONOMINOL N.° 2, onde entrava a estriquinina em dose suficiente
para libertar o mundo do infame sujeito.

Que glória! Aldrovando prelibava essas delícias todas
quando lhe entrou pela escada a dentro a primeira carroçada de livros.
Dois brutamontes de mangas arregaçadas empilharam-nos pelos cantos,
em rumas que lá se iam; e concluso o serviço um deles pediu:

—Me dá um matabicho, patrão!…

Aldrovando severizou o semblante ao ouvir aquele "Me" tão
fora dos mancais, e tomando um exemplar da obra ofertou-o ao "doente":

—Toma lá. O mau bicho que tens no sangue morrerá asinha
às mãos deste vermífugo. Recomendo-te a leitura do
capítulo sexto.

O carroceiro não se fez rogar; saiu com o livro, dizendo ao companheiro:

—Isto no "sebo" sempre renderá cinco tostões.
Já serve…

Mal se sumiram, Aldrovando abancou-se à velha mesinha de trabalho
e deu começo à tarefa de lançar dedicatórias
num certo número de exemplares destinados à crítica.
Abriu o primeiro, e estava já a escrever o nome de Rui Barbosa,
quando seus olhos deram com a horrenda cinca:

"daquele QUE SABE-ME as dores".

—Deus do céu! Será possível?

Era possível. Era fato. Naquele, como em todos os exemplares
da edição, lá estava, no hediondo relevo da dedicatória
a Fr. Luís de Sousa, o horripilantíssimo— QUE SABE-ME…

Aldrovando não murmurou palavra. De olhos muito abertos, no rosto
uma estranha marca de dor—dor gramatical inda não descrita nos livros
de patologia—permaneceu imóvel uns momentos.

Depois, empalideceu. Levou as mãos ao abdômen e estorceu-se
nas garras de repentina e violentíssima ânsia.

Ergueu os olhos para Frei Luís de Sousa e murmurou.

—Luís! Luís! Lamma Sabachtani!

E morreu.

De quê, não sabemos—nem importa ao caso. O que importa
é proclamarmos aos quatro ventos que com Aldrovando morreu o primeiro
santo da gramática, o mártir número um da Colocação
dos Pronomes.

Paz à sua alma.

The original title of this short story is "O Colocador
de Pronomes." We printed the version published by Livraria Cultura
Ltda on Antologia de Contos, Vol. II, organized by O. Pimentel.

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