He always used to bring a rose stolen from his mother’s
vase, from the company… I never asked
where the roses
came from, but I know they were stolen.. Before sex
always a remarkable walking, he
wished to be remarkable
and he was, is, will be, would be…
By
Ana Ferreira
ELE
—Nicole Kidman ou Demi Moore?
—O quê?
—Qual das duas você escolheria?
—Pra?
—Pra uma noite de amor… ou manhã, tarde…
—As duas me querem…?
—Estão loucas por você.
—E eu tenho que escolher uma…
—Quem você prefere?
—Nicole Kidman ou Demi Moore?
—Qual delas?
—Nicole Kidman.
—Certo. Juliette Binoche ou Winona Ryder?
—Hum… Juliette Binoche.
—Mira Sorvino ou Julia Roberts?
—Mira Sorvino.
—Madonna ou Sharon Stone?
—Madonna.
—Kate Moss ou Gisele Bündchen?
—Kate Moss.
—Sou muito mais a Gisele Bündchen.
—Prefiro a Kate Moss.
—A Laura parece um pouco com ela…
—Você acha?!
—Ela acha…
—Nada a ver. Tom Cruise ou Keanu Reeves?
—Você responde!
—Não, agora é sua vez… Tom Cruise ou Keanu Reeves?
—Eu comecei…
—Vai, Tom Cruise ou Keanu Reeves?
—Keanu Reeves.
—Brad Pitt ou Johnny Depp?
—Johnny Depp.
—Bruce Willis ou Antonio Banderas?
—Bruce Willis!
—Lenny Kravitz ou Maxwell?
—Os dois.
—Um só.
—Kravitz.
—Raí ou Euller?
—Não sei quem é Euller…
—O Filho do Vento!
—Que filho de quem?
—O Euller do Palmeiras, o Filho do Vento, ele corre muito…
—Fecho no Raí.
—Mike Tyson ou Hollyfield?
—Mike Tyson.
—Woody Allen ou Steven Spielberg?
—Woody Allen.
—Bob Dylan ou Bob Marley?
—Eu não lembro a cara… Bob Dylan, acho…
—Bill Clinton ou Bill Gates?
—Clinton.
—Príncipe Charles ou Fidel Castro?
—Nenhum.
—Tem que escolher um, se não escolher vai ser estuprada pelos dois.
—Fidel, então…
—Maluf ou Suplicy?
—Suplicy, mil vezes.
—Toni Ramos ou Vera Fischer?
—Vera Fischer.
—Angela!!
—Você perguntou, eu respondi…
—Ulisses ou o Flávio?
—Amigo não vale.
—Vale sim. Ulisses ou Flávio?
—Dá então pra escolher uns melhores?
—Uns melhores?! Alexandre…?
—Nunca! Chega de vinho.
—E o André?
—Cansei dessa brincadeira…
—Idéia sua. Alexandre ou André?
—Você.
Ele finge que não ouviu. Desenha uma estrela no canto do bloquinho da Varig…
—Fora a Laura, quem mais você amou?
—Por quê…?
—Curiosidade!
—Só amei você.
—Mentiroso. Fala do seu primeiro amor…
—Já falei.
—Então o segundo…
—Não lembro.
—Uma que você só comeu…
—De jeito nenhum.
—Adoro histórias de sedução.
—Então lê um romance, assiste a um filme…
—Eu te falo cada cara que eu tive…
Ele olha pra porta, cruza os braços.
—Já sei o suficiente, não quero saber mais nada. Isso não me excita.
—Não parece, pelo volume na sua calça…
—É o meu pau.
—Tive um namorado que só me dava presentes que alimentavam a minha fantasia…
—Olha só que interessante!
—E eu morria de tesão imaginando outras mulheres com ele…
—Me poupe, eu não quero saber.
—Adoro você!
—Adoro você…
—O último antes de você foi o maior de todos os meus grandes enganos, foi muito engraçado… nomes ou codinomes!?
—Fica a seu critério.
—Eu não tenho critério. —Isso me irrita.
Anda em direção à porta. Recua. Segura o meu rosto e me beija infinito com a certeza de que dali para a cama é só
alguns passos… Avanço.
—Eu adoraria saber cada segundo da sua existência.
—Prefiro as possibilidades desse momento, tanta coisa pra descobrir…
Ele me arrebata num amasso sem saída e se esfrega em mim de um jeito que não tem mais como parar.
—Codinomes, é melhor.
—Nomes, eu prefiro, me sinto menos otário. Quem foi o último babaca que te comeu…? Manda…
—Você conhece.
—Fala logo.
—André.
—Caralho! Você deu pro André!?
—Foi antes de você. Foi muito engraçado…
—Engraçado!?
—É, e foi antes…
—Tudo bem, desculpa.
Ele levanta e se olha no espelho.
—Quanto antes?
—Umas duas semanas…
—Caralho!!
Mete as mãos nos bolsos da calça.
—Tudo bem… Quem mais?!
—Ninguém, esquece.
—Não, fala! E manda logo de cara a mais hard que é pra eu já ficar bem conformado.
—Amores passam… bobagem.
—Amores?! Foi um amor o André?
—Amores, paixões, acidentes de percurso…
—Chega.
Ele senta na cama e tira a minha blusa, lambe os meus mamilos…
—Tem uns caras que eu lembro tudo, outros mais ou menos, acho que confundo alguns…
—Não quero saber.
—Tem gente que eu lembro o cheiro, o gosto…
—Pára.
Ele tira a minha calcinha.
DON JUAN
Só sei falar de amor.
Acordei com uma música que eu não conhecia. Na verdade não sei se acordei com a música ou se era a trilha do meu
sonho. Não lembro o sonho, mas acordei amando… era uma música de amor e ele surge no branco do teto do meu quarto. É ele
tocando pra mim. Don Juan em busca da mulher ideal, e ela era eu.
Existe uma grande diferença entre sedutores e
galinhas, tenho uma teoria e pretendo fazer uma tese a respeito. O
galinha quer comer todas, o sedutor quer encontrar a amada. O galinha busca quantidade; o sedutor, qualidade. O sedutor é
romântico, o galinha é sacaninha. O sedutor é verdadeiro, profundo… Don Juan é um sedutor. Vou chamá-lo de Don Juan. Ele
sempre trazia uma rosa roubada do vaso da casa da mãe, da empresa… nunca perguntei de onde vinham as rosas, mas sei que
eram roubadas. Antes do sexo sempre um passeio marcante, ele queria ser marcante e era, é, será, seria… No nosso primeiro
encontro íntimo, eu usava uma calcinha azul, nada intencional, se soubesse que ia dar pra ele naquele dia teria optado por uma
preta, branca… Era uma calcinha azul básica de algodão meio velha que eu roubei da Verônica e ele adorou.
—Você é linda só com essa calcinha azul…
—Tenho outras cores…
—Prefiro sem.
—Vem…
Tirei a azul e ele me degustou. Me torturava de prazer até eu implorar uma penetração.
—Eu quero…
—Calma…
—Por favor!
—Espera um pouco…
—Eu quero agora!
Eu ficava num estado de agonia e euforia que se ele não fizesse logo, acho que eu entrava em surto. Aí ele me
penetrava calmamente, até o fim, preenchia tudo, inteiro. E se desenrolava a nossa sinfonia erótica… Andante tranqüilo, allegro
moderato, galope infernal… Sempre acho que falei demais.
Não lembro exatamente quando nos vimos pela primeira vez, ele me diria que foi numa Sexta-feira da Paixão, no
restaurante perto da rádio. Eu trabalhava numa rádio, era diretora de um programa de variedades e bolava quase tudo; tinha dicas de
beleza, moda, horóscopo, e tinha um espaço onde eram lidas histórias de amor que os ouvintes mandavam. A gente dava um
trato na narrativa, floreava um pouco a trama e uma moça estranhérrima, mas de voz muito sensual, lia as histórias meladas
com
uma interpretação gélida e envolvente. Era o máximo esse programa, “Sol a Pino” era o nome, de segunda a sexta, de
meio-dia às duas da tarde. Salário razoável.
Eu preferia almoçar depois do programa, sem preocupações, sem solicitações… Muito aconchegante o restaurante
perto da rádio, uma mistura de francês com italiano e tinha ótimas saladas. Quando eu chegava, ele estava saindo, pelo menos
umas duas vezes por semana a gente se topava, eu na entrada, ele na sobremesa. Sozinho ou com uma morena de cabelo curto
ou com uma loura chanel ou com um cara de cavanhaque. Eu também variava a companhia, Lurdinha, André, Eugênia,
Vicente… sempre tinha um faminto ou um louco por conversa fiada nos corredores da rádio, mas não naquele dia. Ele também só,
no lugar do prato, um grande livro aberto.
Sento na minha mesa próxima à janela, ele levanta os olhos e pede a conta pro mesmo garçom que anotou o meu
pedido, depois volta para o livro, lindo… eu achava, Lurdinha achava um horror e falava que ele tinha jeito de ser um
puta galinha… Eu sabia que era um sedutor. Don Juan. Ele olhava para as mulheres, gostava das mulheres, mas comigo era diferente, eu
era especial.
Calor tropical. O restaurante não tinha ar condicionado. Os ventiladores levantavam a toalha de duas mesas, a dele
era uma das premiadas e pude ver que ele usava uma bermuda. Que joelhos! Enlouqueci com os joelhos daquele homem…
nunca imaginei que um par de joelhos pudesse alterar a minha pressão sangüínea daquele jeito. Mudei o foco: o livro. Tentei
ver o título e nesse momento ele o fechou sem marcar a página. Fiquei sem graça, mas pude ler “A Divina Comédia”. Eu
tinha esse livro em casa, e pela capa poderia ser a mesma edição. Chega o meu prato e a conta dele. Preenche o cheque e não
se levanta. Começo a comer, ele não levanta. Quero olhar pra ele, mas me limito ao quadro na parede, uma cópia; que falha
seria esquecer de mencionar o quase-beijo de Paolo e Francesca, ela com um livro aberto e os olhos baixos, a meio segundo
de ser beijada por seu amado e proibido cunhado Paolo… Todos os dias, quando eu via esse quadro, pelo menos por uma
fração de segundo, eu lembrava dos dois irmãos que amei. Nicolau e Nicodemos. Mais o Nicodemos. Ele não se levanta.
Na “Divina Comédia”, Dante encontra-se com Francesca no inferno, claro. É isso! Ele quer um gancho pra se
aproximar, vai comentar o quadro, o livro… Aplico uma visão lateral, parece que ele me olha, fico esperta com o passeio dos meus
olhos pelas paredes, pessoas, mesas, cadeiras, porta, pratos, joelhos, ele. Desvio. Meu Deus! Ele contemplava o meu almoço
como se fosse um quadro. Francesca da Rimini
—by William Dyce —à minha direita. Cada mastigada era um suplício com
aquele homem me observando… Virei a Coca-Cola e veio a idéia que me deixaria com uma fantástica ação paralela: o roteiro do
programa. Pego o calhamaço, finjo que leio, faço umas anotações totalmente sem sentido e ele não se levanta. Me encorajo e
encaro. Ele me olhava com meio-sorriso… Ele levanta. Eu suspiro.
—Posso sentar?
—Pode, se antes disser por que ficou me olhando assim…
—Vontade de te conhecer, desculpe.
—Pensei que estivesse me confundindo com alguém.
—De jeito nenhum, você é inconfundível.
Inconfundível era aquele par de joelhos. Eu deixo uma lacuna, ele segue seguro…
—Te vejo sempre aqui. Já sei que você trabalha na rádio, almoço ouvindo o seu programa, todos aqui ouvem.
—É, eu sei, ouvintes fiéis.
—É muito divertido. Inteligente, bem-humorado… vou mandar uma história de amor.
—Pode entregar diretamente pra mim.
—Não, mando pelo correio, um dia…
Formal. Ele levanta e me estende a mão.
—Foi um grande prazer conhecer você.
—Prazer.
Dou uma última olhada nos joelhos, ele pega o livro e vai.
“A Divina Comédia”. Procurei, um por um, umas três ou quatro vezes e não encontrei. Eu tinha a certeza de ter aquele
livro em casa. Quantas vezes o folheei, revirando os trechos do inferno… o encontro de Dante com Francesca, condenada
pelo amor… Nicolau e Nicodemos. Sentia-me meio Francesca quando namorei os irmãos. Um dia eu conto pra Don Juan, tudo
eu contaria pra ele… eu pensava enquanto procurava o livro. Amei os dois. Nicolau foi o traído. Nicodemos era o Paolo. Eu
já tive um Romeu, um James Bond, Che Guevara, Kung-fu, Don Juan… “A Divina Comédia”. Na casa da minha mãe também
não estava, nem com meus irmãos. Pensei em ligar para alguns amigos que teriam livros meus, mas é um sacrifício tão grande
cobrar livros emprestados… Quem pegou que tenha a iniciativa de devolver. Sei que humanos est7ão sujeitos a falhas, os
Nefilim também, até os anaw6kx erram… Notei vários volumes alheios em minhas prateleiras… e um par de joelhos é só um par de joelhos.
Don Juan passou a fazer parte da minha história com muita sutileza. Moço cauteloso, certos seres não agem na
pressa. Banho-maria. Foi impecável com os meus colegas de trabalho, comentava o programa, dava uns palpites redondos pra
me impressionar e nunca mais apareceu com a morena de cabelos curtos, nem com a loira chanel. Lurdinha mudou de
opinião a respeito dele que de galinha passou a
bem interessante… Eu estava encantada, especialmente depois da canja que ele
deu no piano do restaurante. Uma música de amor… Meu imaginário foi a mil e ele sumiu. Desapareceu. Um mês. Pergunto ao
garçom. —Ele sempre viaja… —Explicado o sumiço. —Ele esqueceu um livro em cima do piano. —O garçom ainda informa. O elo.
Quem sabe se entre as páginas ele não teria deixado um contato, uma pista… Claro! Pedi o livro ao garçom amigo. Pois não… O
meu livro! O meu livro da minha mãe!
Minhas pernas bambeiam. Sento. Logo na contracapa, a estrela de cinco pontas que minha mãe desenhava em todos
os volumes como marca registrada. Virei as páginas. Na 119 tinha um marcador lilás e na página 357, um cartão de empresa
com o nome do pai dele, Miguel Fonseca -presidente.
Como ele teria o meu livro? Quem era aquele cara? Segurei o braço do
garçom,
disse que era um livro muito importante e que estaria mais seguro em casa. Ele concordou imediatamente. Ouvinte fiel.
Passei o dia supondo… Ele provavelmente me seguiu e invadiu o meu apartamento….nunca confiei no sistema de
segurança do prédio… pode ter entrado como entregador de pizza, encanador, eletricista, qualquer coisa… Ficou escondido me
observando entre frestas, babaca. Me ouviu falando sozinha, observou meu sono… sempre durmo nua… Ou ele pode ter vindo a
alguma festa em casa… impossível, eu o teria notado… Emprestei esse livro e emprestaram a ele… não… esqueci em algum lugar,
alguém achou e vendeu pra um sebo e ele comprou… Tanta coisa poderia ser… Fiquei muito intrigada, isso me consumiu horas
em elucubrações. Acabei recuperando alguns volumes emprestados há séculos, no entanto não localizei “A Divina
Comédia” com nenhum dos meus amigos. Só poderia ser o meu livro. Da minha mãe, na verdade. Fiquei na espera. Don Juan
apareceria e desvendaria o mistério. Ele era familiar, se parecia com alguém… tinha um ar de celebridade, de mito… e eu precisava
rever os joelhos.
Duas assistentes me ajudavam na seleção das histórias de amor. Cerca de cento e cinqüenta cartas diariamente, as
histórias mais absurdas da face da terra. As de caligrafia ininteligível e as pornográficas eram as primeiras a serem descartadas
por minhas assistentes, mas eu fazia questão de conferir uma por uma… meus anos decifrando os sonhos que a minha mãe
escrevia no escuro me deixaram apta a entender até receita médica, e aconteceu de umas vezes elas deixarem passar algumas pérolas.
Olho para os dois montes de cartas sobre minha mesa. Opto por conferir primeiro as descartadas. Encontro algumas
histórias razoáveis e outras duas que chamam a minha atenção por terem a mesma caligrafia e mesmo início.
`Eles se conheciam de alguma outra vida, se outra vida existiu. E tinham um pacto, se reconheceriam. Ele a
encontraria numa Sexta-feira da Paixão. Quando ela entrou naquele pequeno restaurante, ele sentiu que ganhava o maior presente de
sua vida: a amada… ”
Entre as selecionadas, encontro uma terceira carta com a mesma letra e exatamente o mesmo início das que minhas
assistentes consideraram lixo. Obviamente aquelas três histórias foram escritas e enviadas pela mesma pessoa. O primeiro parágrafo
era igual nas três, depois tudo mudava.
Resumindo:
Na primeira, eles se apaixonam, se casam e passam a vida juntos numa casa cor-de-rosa.
Na segunda versão, eles apenas se olham, passam a vida se olhando e só na velhice se dão conta que a caravana passou…
Na terceira, saem do restaurante, passam uma intensa noite juntos e nunca mais se encontram.
Era ele o autor. Don Juan. Certeza.
Minhas assistentes selecionaram a terceira versão deduzindo que as duas descartadas fossem cópias. Alguns
participantes mandavam a mesma história em duas ou três vias. Ficou claro que elas leram somente o início das cartas. Eu só poderia
escolher a primeira versão.
Entrei no restaurante esbaforida e ele estava na
minha mesa. Lindo. Sorri e me sentei. Ele me deu urna rosa (até hoje
guardo as pétalas). Conversamos a vida e ele não desvendou o mistério do livro, disse que o pegou na biblioteca da casa do pai
dele e não deu a mínima pra coincidência
do desenho da estrela de cinco pontas na contracapa,
—Todo mundo desenha estrela. —foi
o breve comentário —… estrela, coração, quadrado, florzinha…
—complementou. Porra. Não era uma
simples coincidência… Que decepção. Eu esperava um relato heróico, uma descrição minuciosa da estratégia pra obter o meu
livro… Nada. Também pensei que ele fosse comentar o quadro do restaurante e o encontro de Dante com Francesca no inferno
da “Divina Comédia”… Nada. Talvez ele ainda nem tivesse chegado nesse setor do inferno, talvez nem soubesse quem era
o casal do quadro. Sou uma tonta que conecta tudo, sempre acabo encontrando uma relação para os fatos… É que o
panorama me fez crer que ele estava jogando comigo; tudo planejado, cartas do destino cuidadosamente estudadas e
embaralhadas por ele; o quadro, o livro, o silêncio… Nada. Será que ele conhece o Nicolau? E Nicodemos? O mundo é pequeno e nele
só existem dezessete pessoas… Nada. Nada importava, não fazia a menor diferença, eu queria vê-lo e ele estava ali… Eu
queria tanto… Não fizemos amor naquela noite, mas nos beijamos e nos abraçamos de todas as maneiras cabíveis dentro de um
carro. Na manhã seguinte Don Juan liga pedindo o livro e eu engasgo quando ele diz que está na portaria do meu prédio.
—Sobe.
Engasgada, abri a porta. Ele não entendeu. Eu estava sem fôlego e as lágrimas escorriam, mas não era choro. Ele
entendeu. Bateu nas minhas costas, levantou minha cabeça e meus braços, tudo fez pra me salvar do acesso provocado pelo
pedaço de bolo engolido errado. Fui aos poucos me recuperando e bebi um copo d’água.
—Passou?
—Passou.
—Tá bem mesmo?
—Passou… pensei que fosse morrer… Engasguei com o bolo… quer um pedaço?
—Não, obrigado…
—Desculpa… Que recepção…
—Não agüentei, eu precisava te ver.
—Quer um suco, um café?
—Quero você.
Ele me beijou com urgência, não dava mais pra segurar.
—A gente vai ter que transar…
—Assim…?!
—Se a gente não transar isso não vai passar e vai ficar cada vez pior.
Ele tinha toda razão. Da cozinha diretamente para o quarto. Ele tirou a roupa dele e eu tirei a minha e eu usava a
calcinha
azul. Virilidade encarnada. O pau ereto, vibrante, meu, na minha mão, bom de segurar… A penetração era um momento
muito delicado e explorado e ficávamos na mesma posição até esgotarmos todas as possibilidades que cada uma
proporcionava. Geralmente a gente começava de frente, olhos nos olhos… O rosto dele me penetrando era singular; a boca entreaberta,
pálpebras semicerradas… em nenhuma outra situação ele teria aquela expressão. Suspiro. Ele gostava quando eu ficava por cima
e cavalgava… Andante tranqüilo, allegro moderato, galope infernal… Eu adorava ficar de quatro e ele mordendo a minha
nuca. Era quase sempre essa a nossa posição final, triunfal, a posição animal, e os dentes dele cravados no meu cangote! Eu
me sentia meio loba ou leoa… mas já fui anta uma vez e logo na seqüência ele disse que ficaria dois meses fora do país. Ele
tocava os negócios do pai em Miami, e vivia dividido, muito mais lá. Nos últimos tempos, ficava no máximo uma semana e ia
embora… Mas me ligava todos os dias, de onde estivesse ele me ligava e era só amor. Não me interessava mudar pra Miami, mas
achei que era hora de passar uns tempos com ele e pedi umas férias na rádio.
—Pedi férias na rádio…
—Cansada?
—Não é cansaço, eu queria passar uns tempos com você em Miami.
—Você disse que não gosta de Miami.
—Mas eu gosto de você…
—Lá eu não tenho tempo pra te dar atenção, ainda mais agora…
—Abre o jogo, você está com alguém por lá.
—Não é bem assim…
—Fala!
—Eu tenho a minha vida.
—E essa sua vida envolve mais alguém.
Ele não respondeu à minha afirmativa. Nem precisou. Levantei, falei que ia ao toalete e saí do restaurante pela lateral.
Não olhei para trás. Parei um táxi e fui pra casa. Quando entrei, o telefone tocava insistente, deixei a secretária atender… Era
Don Juan e eu não era a mulher ideal. Baixei o volume pra não ouvir o recado, peguei chave do carro e me enfurnei no sítio de
uma amiga a 50 km da cidade, até a hora do embarque dele.
O pedido de férias pegou mal na rádio e a chefia decidiu acabar com o programa. Acho que foi melhor. Aproveitei a
deixa e peitei uma reviravolta na vida. Mudei pro oeste da cidade, pintei o cabelo de loiro dourado, comprei uma cama nova e
me matriculei num curso de fotografia e num de street dance. Não apareci mais no restaurante, Quase morri de amor. Passei
meses chorando de saudade. Doeu.
Don Juan só conseguiu me localizar uns três anos depois. Viu meu nome nos créditos da revista onde eu estava
trabalhando e ligou. É claro que tive um enorme desejo de ir correndo ao seu encontro. Eu ainda nem intuía o porquê, mas segurei o
impulso e disse que estava casada e quem sabe um dia… Não consegui encontrar nenhum motivo terreno pra justificar minha
atitude; eu já tinha vivido todo tipo de situação… fui traída, traí, sofri calada, dei vexame, ganhei e perdi batalhas amorosas, mas
com Don Juan, optei por simplesmente me retirar. Pressenti que nós dois não podíamos… E ainda não sei tudo sobre “A
Divina Comédia”, que voltou para a minha biblioteca.
A PASTA AMARELA
Não me resumo a uma dama do erotismo, uma oradora sexual, não, eu sou romântica, sentimental, amadora…
Descobri que a minha missão neste mundo é amar, minha grande experiência de vida é o amor e o amor é mais que tudo, é a
bênção maior, é divino, portanto minha existência já vale alguma coisa. Além de filha de Deus, também sou neta Dele, legítima.
Não gosto dessa história de justificar a personalidade de alguém se apoiando no meio ambiente ou na genética, mas no meu
caso é diferente, para me entender é imprescindível conhecer minha origem.
Cresci com velas derretendo pela casa e lágrimas encharcando o rosto da minha mãe. Ela me abraçava forte como nos
filmes, me beijava e olhava no fundo dos meus olhos como se pudesse de alguma forma resgatar os olhos do meu pai, seu
eterno amado.
Raramente a história que nos contam é a real, segredos de família sempre existiram e vão existir em todo lugar. Você
pode jamais saber, mas seus genitores seguramente escondem alguma coisa a sete mil chaves.
Sempre soube que meus irmãos e eu não éramos filhos do mesmo pai. Mamãe contava que meu pai era muito, muito
diferente… Ele é um anjo. Na minha certidão de nascimento, no lugar do nome do pai, tem uma inscrição, escrita angélica, composta
por: traço, xis, traço, xis, traço.
*****
Como todos os Nefilim, fui gestada em apenas três meses, era o que minha mãe me dizia, e dizia isso pra quem
ousasse perguntar quem era o pai da menina…
“Anaw6kx têm sexo sim, e o que eu amei era muito mais homem do que qualquer outro… Os Nefilim são os filhos dos
anaw6kx com humanos, a gestação é mais rápida mesmo… Deus me deu este presente. A Bíblia fala dos Nefilim… ”
As más línguas diziam que mamãe tanto apertou a barriga que conseguiu esconder a gravidez até o sexto mês.
Línguas malditas… E não pensa que eu falo essas coisas só pra dar uma mitificada na sacanagem, longe disso. É a minha história,
e inventada ou não, é o que me foi passado: meu pai é um anjo.
Dediquei um tempo da minha vida pesquisando os Nefilim. Consultei livros, filmes, entrevistei padres, pastores, até
com
um cardeal eu falei. Na verdade ninguém sabia muita coisa sobre os supostos gigantes que habitaram, dominaram e
corromperam a Terra antes do dilúvio.
“Os filhos de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e tomaram como mulheres
todas as que lhes agradaram.” Os espertos se encantaram com as lindas, elas gostaram do sexo dos anaw6kx e geraram uma
nova raça: os Nefilim. Libidinosos, temidos, poderosos, frutos do amor entre os filhos dos Céus e as beldades terrenas.
Sou mais alta que minha mãe, mas estou longe de ser gigante, a não ser na coragem e no apetite sexual. Talvez…
Segundo minhas pesquisas, mamãe não tinha noção do que seria ter um Nefilim em casa, mas tinha resposta pra tudo e disse que
eu era de um tipo refinado, evoluído… ela enchia a minha bola. E só quando as minhas amigas começaram a me chamar de
mentirosa, mamãe revela que meu pai morrera num acidente, pouco antes do meu nascimento. Era anjo, Deus chamou. Eu nunca o
conheci, mas sei de cada detalhe da curta e louca história deles. Prato cheio pros românticos, psicólogos… Até os teólogos se interessariam.
Mamãe era linda! Já tinha meus dois meio-irmãos e o marido a havia trocado pela secretária só porque ela não
gostava de sexo anal. Foi o fim, mamãe chorou muito, perdeu a fome, mas depois de duas semanas de separação já agradecia a
Deus por ter tirado da vida dela aquele tarado traidor. Ele tentou voltar algumas dezenas de vezes, pediu desculpas, implorou,
mandou flor, deu anel, disse que só faria sexo convencional… mas ela não quis, estava com
“o coração fechado para reforma e o
corpo travado para qualquer toque”.
Li tudo isso numa longa carta que ela nunca mandou pro meu pai, ficava junto com
outras cartas e um caderno de anotações, numa pasta amarela, em cima do armário, sob uma mala cheia de roupas de inverno.
Eu achava excitante saber a intimidade da minha mãe, divagava olhando pra ela. Imaginava as cenas relatadas, os sonhos
que ela escrevia na madrugada… Ela não gostava quando eu a olhava
daquele jeito. Daquele jeito era lembrando da pasta
amarela. Até hoje ainda sei muitos trechos de cor…
“Eu me sentia tão longe do amor e você me tocou, senti meu corpo febril..
me beijou e me arrebatou, e as suas mãos deslizaram… seios, ventre, sexo… ”
Quando achei a pasta, não acreditei. Minha mãe escreveu seios, ventre, sexo… O ventre tudo bem, mas seios e sexo…
Sexo! Eu tinha medo de falar sexo, a palavra sexo soava estranha, proibida… Sexo. A leitura interessou. Muitas coisas sobre ela
e o meu pai, a história deles. Sexo.
Tudo começou no cinema. Chovia torrentes e o bairro ficou sem luz. O filme parou quase no fim. Minha mãe tinha
uma lanterninha de leitura e ajudou a iluminar o caminho da pequena platéia, que em poucos minutos cansou do blecaute.
“A grande sala parecia vazia, percorri todo o espaço com a luz pouca da lanterna e ele surgiu no breu, eu o via
sempre, a cada novo filme… Não tínhamos nenhum tipo de relacionamento, mas nos víamos com certa freqüência, nos
olhávamos… passamos a nos cumprimentar e, depois de um tempo, conversamos algumas vezes na porta do cinema, comentando o
roteiro, o desfecho, os truques de filmagem… Ele segurava minhas mãos enquanto falava comigo. Fora do cinema só nos
víamos em sonhos… Naquele dia ele veio decidido a enfrentar a fúria dos deuses. Era a primeira vez que estávamos só nós
dois naquela imensa sala de projeção! Ele segurou a minha mão. Tentamos adivinhar o final do filme e eu, sem mais nem
menos, comecei a chorar. Chorei muito e inexplicavelmente. Como pode, num primeiro encontro romântico alguém chorar
daquele jeito…? Lancei a culpa na lua cheia e chorei por todos os amores impossíveis ou
ameaçados.”
Era só o trailler…
“Saímos do cinema e andamos abraçados pelo centro velho da cidade… ”
A cada quarta-feira um novo filme de amor. Eles se viam às quartas-feiras.
“Qual seria o nosso destino? Perguntas e descobertas desfilavam na minha cabeça… Amor sem pressa, no entanto
urgente, nenhum dos dois entendia o porquê de tantos suspiros, eu só sentia que há muito tempo te conhecia e que juntos para
sempre nós iríamos ficar, em algum lugar… ”
Diz a carta que eles foram pro Caribe. Minha mãe nunca conheceu o Caribe. Desconfio que seja o nome de algum
hotel, motel, pousada…
“…e fomos para o Caribe. Poderíamos gritar de alegria! E ele me amou como nenhum homem nunca tinha feito… e
passamos a noite inteira descobrindo o mundo em cada sensação… Olhos abertos, olhos nos olhos só para ter certeza, o tempo
todo, que éramos nós dois ali. Meu anjo e eu. Você e eu… Amor. ”
Isso nunca tinha acontecido e jamais se repetiria.
“… tirou a minha roupa e disse que eu era exatamente como você imaginava… Minha calcinha na altura dos
joelhos não me deixava abrir as pernas direito e eu terminei de tirá-la usando o calcanhar. Me beijou inteira, e seus dedos
firmes tocaram a minha intimidade até me inundar de desejo… Mergulhou nos meus olhos e entrou em mim… Fizemos um
amor intenso como só os deuses são capazes. Alinhamos os planetas… Movimentos precisos, umidade, unidade, orgasmos…
E uma única vez valeria mais que toda uma eternidade sem provar o seu amor… ”
Tudo isso ela escreveu, tá tudo guardado na pasta amarela. A minha mãe!
Um detalhe: ela descreve os acontecimentos se referindo ao seu amado, tanto na segunda quanto na terceira pessoa,
“você” e “ele” são o mesmo: meu pai. O homem e o anjo.
Passei a vida imaginando aquela noite intensa, aquele amor único que poucos no mundo têm a bênção de experimentar…
“Nunca mais! Como pode meu Deus!? Meu grande amor ir embora assim… Como é possível o Deus que é amor
acabar com uma história tão única? Como pode fazer isso com a gente? Nunca mais o seu olhar, o seu rosto, a sua mão na
minha mão, nossas longas conversas, suas palavras. Como viver sem seus beiaw6kx, seu sorriso, nosso sexo… Acabou
Quarta-feira, você nunca mais, saiu de cartaz. ”
Era um filme de amor que não cabia, não podia neste cinema. O mais incrível é que os protagonistas não pararam por
aí, continuaram se encontrando nos sonhos de minha mãe. Alguns ela escreveu meio dormindo e no escuro, pela caligrafia
torta como as linhas de Deus, noutros parece bem acordada; boa letra, parágrafos, parênteses, datados, com horário,
observações, relações com fatos cotidianos e o escambau. Muitos sonhos. Erotismo, medo, prazeres, culpas, desculpas e
descobertas, descrições completas do que eles viveram entre o Céu e a Terra.
“Acordei feliz e molhada, sonhei com o meu anjo… Era uma festa, numa fazenda. Eu saí da casa, fiquei olhando as
estrelas e surge ele, falando que as abelhas tinham descoberto um novo jeito de fazer mel. Alguém se aproximava,
aproveitamos o escuro e nos refugiamos numa espécie de estábulo. Ouvimos vozes por perto, muitas vozes, cada vez mais, como se a
festa estivesse se deslocando… Falavam muito e alto e nós fizemos tudo silenciosamente, golpeando o escuro e
adivinhando cada pedaço de nós… Ele levantou a minha saia, afastou a minha calcinha (como no sonho do avião) e me fincou sua
espada gloriosa. Em todos os sonhos, no momento que ele me penetra, eu sinto fisicamente… ”
Tem muitos sonhos anotados, aos poucos eu vou citando… Coisas incríveis. Depois do meu pai, nunca mais teve
outro homem. Verdade. Surgiram vários pretendentes, mas ela não se interessou por mais ninguém, dizia já ter conhecido o seu
grande amor e é bem provável que as cenas vividas nos sonhos a satisfizessem muito mais que o simples contato físico com um
reles mortal. Fica claro numa das anotações que na vida acordada ela também tinha tesão, seu corpo continuava sentindo
deseaw6kx, ela cita alguns homens que chamaram a sua atenção, mas era tão forte a determinação em não ser de mais ninguém, que
esses deseaw6kx carnais eram logo dissipados e recompensados quando ela deitava a cabeça no travesseiro.
Seria muito triste se Deus não existisse.
This text was excerpted from the initial pages of
Amadora, a bestselling book released in September 2001, in Brazil,
by Geração Editorial
(http://www.geracaobooks.com.br). Amadora is Ana Ferreira’s, 36, first book. The author studied
architecture and drama and in 1996 received an award for writing the play
As Priscillas de Elvis (Elvis’ Priscillas)
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