Short story – The Alienist – Machado de Assis – In Portuguese

The Alienist

— The Green House is a private jail, commented a doctor.
Never before had an opinion been accepted so fast. Private jail: that’s
what everyone was saying from north to south and from east to west of
Itaguaí, — with fear, that’s true, because during the week following
the one in which poor Mateus was jailed, twenty people or so, — two or
three well respected — were taken to the Green House.

MACHADO DE ASSIS

V

O Terror

— The Green House is a private jail, commented a doctor.
Never before had an opinion been accepted so fast. Private jail: that’s
what everyone was saying from north to south and from east to west of
Itaguaí, — with fear, that’s true, because during the week following
the one in which poor Mateus was jailed, twenty people or so, — two or
three well respected — were taken to the Green House.

MACHADO DE ASSIS

 

V

O Terror

 

… continued from the May issue

— A Casa Verde é um cárcere privado, disse um médico sem clínica.

Nunca uma opinião pegou e grassou tão rapidamente: eis o que se repetia de norte a sul e de leste a oeste de
Itaguaí, — a medo, é verdade, porque durante a semana que se seguiu à captura do pobre Mateus, vinte e tantas pessoas, —
duas ou três de consideração, — foram recolhidas à Casa Verde. O alienista dizia que só eram admitidos casos
patológicos, mas pouca gente lhe dava crédito. Sucediam-se as versões populares. Vingança, cobiça de dinheiro, castigo de
Deus, monomania do próprio médico, plano secreto do Rio de Janeiro com o fim de destruir em Itaguaí qualquer germe
de prosperidade que viesse a brotar, arvorecer, florir, com desdouro e míngua daquela cidade, mil outras explicações,
que não explicavam nada, tal era o produto diário da imaginação pública.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a mais comitiva, —
ou quase toda — que algumas semanas antes partira de Itaguaí. O alienista foi recebê-la, com o boticário, o padre
Lopes, os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido
é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo
contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, — balbuciou uma palavra e
atirou-se ao consorte — de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a uma mistura de onça e rola.
Não assim o ilustre Bacamarte; frio como diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu
os braços à dona que caiu neles e desmaiou. Curto incidente; ao cabo de dois minutos D. Evarista recebia
os cumprimentos dos amigos e o préstito punha-se em marcha.

D. Evarista era a esperança de Itaguaí; contava-se com ela para minorar o flagelo da Casa Verde. Daí as
aclamações públicas, a imensa gente que atulhava as ruas, as flâmulas, as flores e damasmos às janelas. Com o braço apoiado
no do padre Lopes — porque o eminente confiara a mulher ao vigário e acompanhava-os a passo meditativo — D.
Evarista voltava a cabeça a um lado e outro, curiosa, inquieta, petulante. O vigário indagava do Rio de Janeiro, que ele não
vira desde o vice-reinado anterior, e D. Evarista respondia entusiasmada que era a coisa mais bela que podia haver
no mundo. O passeio público estava acabado, um paraíso onde ela fora muitas vezes, e a Rua das Belas Noites, o
chafariz das Marrecas… Ah! o chafariz das Marrecas! Eram mesmo marrecas — feitas de metal e despejando água pela boca

fora. Uma coisa galantíssima. O vigário dizia que sim, que o Rio de Janeiro devia estar agora muito mais bonito. Se já o
era noutro tempo! Não admira, maior do que Itaguaí e, demais, sede do governo… Mas não se pode dizer que Itaguaí
fosse feio; tinha belas casas, a casa do Mateus, a Casa Verde…

— A propósito de Casa Verde, disse o padre Lopes escorregando habilmente para o assunto da ocasião, a senhora
vem achá-la muito cheia de gente.

— Sim?

— É verdade. Lá está o Mateus…

— O albardeiro?

— O albardeiro; está o Costa, a prima do Costa, e Fulano, e Sicrano, e…

— Tudo isso doido?

— Ou quase doido, obtemperou o padre.

— Mas então?

O vigário derreou os cantos da boca, à maneira de quem não sabe de nada ou não quer dizer tudo; resposta vaga,
que se não pode repetir a outra pessoa por falta de texto. D. Evarista achou realmente extraordinário que toda aquela
gente ensandecesse; um ou outro, vá; mas todos? Entretanto custava-lhe duvidar; o marido era um sábio; não
recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura.

— Sem dúvida… sem dúvida… ia pontuando o vigário.

 

Três horas depois cerca de cinqüenta convivas sentavam-se em volta da mesa de Simão Bacamarte; era o jantar
das boas-vindas. D. Evarista foi o assunto obrigado dos brindes, discursos, versos de toda a casta, metáforas,
amplificações, apólogos. Ela era a esposa do novo Hipócrates, a musa da ciência, anjo, divina, aurora, caridade, vida,
consolação; trazia nos olhos duas estrelas segundo a versão modesta de Crispim Soares e dois sóis no conceito de um
vereador. O alienista ouvia essas coisas um tanto enfastiado, mas sem visível impaciência. Quando muito, dizia ao ouvido
da mulher que a retórica permitia tais arroaw6kx sem significação. D. Evarista fazia esforços para aderir a esta opinião
do

marido; mas, ainda descontando três quartas partes das louvaminhas, ficava muito com que enfunar-lhe a alma.
Um dos oradores, por exemplo, Martim Brito, rapaz de vinte e cinco anos, pintalegrete acabado, curtido de namoros
e aventuras, declamou um discurso em que o nascimento de D. Evarista era explicado pelo mais singular dos
reptos. “Deus, disse ele, depois de dar o universo ao homem e à mulher, esse diamante e essa pérola da coroa divina (e o
orador arrastava triunfalmente esta frase de uma ponta a outra da mesa), Deus quis vencer a Deus e criou D. Evarista.”

D. Evarista baixou os olhos com exemplar modéstia. Duas senhoras, achando a cortesanice excessiva e
audaciosa, interrogaram os olhos do dono da casa; e, na verdade, o gesto do alienista pareceu-lhes nublado de suspeitas,
de ameaças e provavelmente de sangue. O atrevimento foi grande, pensaram as duas damas. E uma e outra pediam a
Deus que removesse qualquer episódio trágico — ou que o adiasse ao menos para o dia seguinte. Sim, que o adiasse.
Uma delas, a mais piedosa, chegou a admitir consigo mesma que D. Evarista não merecia nenhuma desconfiança, tão
longe estava de ser atraente ou bonita. Uma simples água-morna. Verdade é que, se todos os gostos fossem iguais, o que
seria do amarelo? Esta idéia fê-la tremer outra vez, embora menos; menos, porque o alienista sorria agora para o Martin
Brito e, levantados todos, foi ter com ele e falou-lhe do discurso. Não lhe negou que era um improviso brilhante, cheio
de rasgos magníficos. Seria dele mesmo a idéia relativa ao nascimento de D. Evarista ou tê-la-ia encontrado em
algum autor que?… Não, senhor; era dele mesmo; achou-a naquela ocasião e pareceu-lhe adequada a um arroubo
oratório. De resto, suas idéias eram antes arrojadas do que ternas ou jocosas. Dava para o épico. Uma vez, por exemplo,
compôs uma ode à queda do Marquês de Pombal, em que dizia que esse ministro era o “dragão aspérrimo do Nada”
esmagado pelas “garras vingadoras do Todo”; e assim outras mais ou menos fora do comum; gostava das idéias sublimes e
raras, das imagens grandes e nobres…

— Pobre moço! pensou o alienista. E continuou consigo: — Trata-se de um caso de lesão cerebral: fenômeno
sem gravidade, mas digno de estudo…

D. Evarista ficou estupefata quando soube, três dias depois, que o Martin Brito fora alojado na Casa Verde. Um
moço que tinha idéias tão bonitas! As duas senhoras atribuíram o fato a ciúmes do alienista. Não podia ser outra
coisa; realmente, a declaração do moço fora audaciosa demais.

Ciúmes? Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa
estimável, o Chico das cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia
já quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma
lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois
capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava. Um desses fugitivos chegou a ser preso a duzentos passos da vila.
Era um rapaz de trinta anos, amável, conversado, polido, tão polido que não cumprimentava alguém sem levar o
chapéu ao chão; na rua, acontecia-lhe correr uma distância de dez a vinte braças para ir apertar a mão a um homem grave,
a uma senhora, às vezes a um menino, como acontecera ao filho do juiz de fora. Tinha a vocação das cortesias. De
resto, devia as boas relações da sociedade, não só aos dotes pessoais, que eram raros, como à nobre tenacidade com
que nunca desanimava diante de uma, duas, quatro, seis recusas, caras feias, etc. O que acontecia era que, uma vez
entrado numa casa, não a deixava mais, nem os da casa o deixavam a ele, tão gracioso era o Gil Bernardes. Pois o Gil
Bernardes, apesar de se saber estimado, teve medo quando lhe disseram um dia que o alienista o trazia de olho; na
madrugada seguinte fugiu da vila, mas foi logo apanhado e conduzido à Casa Verde.

— Devemos acabar com isto!

— Não pode continuar!

— Abaixo a tirania!

— Déspota! violento! Golias!

Não eram gritos na rua, eram suspiros em casa, mas não tardava a hora dos gritos. O terror crescia; avizinhava-se
a rebelião. A idéia de uma petição ao governo, para que Simão Bacamarte fosse capturado e deportado, andou
por algumas cabeças, antes que o barbeiro Porfírio a expendesse na loja com grandes gestos de indignação. Note-se —
e essa é uma das laudas mais puras desta sombria história — note-se que o Porfírio, desde que a Casa Verde
começara a povoar-se tão extraordinariamente, viu crescerem-lhe os lucros pela aplicação assídua de sanguessugas que dali
lhe pediam; mas o interesse particular, dizia ele, deve ceder ao interesse público. E acrescentava: — é preciso derrubar
o tirano! Note-se mais que ele soltou esse grito justamente no dia em que Simão Bacamarte fizera recolher à Casa
Verde um homem que trazia com ele uma demanda, o Coelho.

— Não me dirão em que é que o Coelho é doido? bradou o Porfírio.

E ninguém lhe respondia; todos repetiam que era um homem perfeitamente ajuizado. A mesma demanda que ele
trazia com o barbeiro, acerca de uns chãos da vila, era filha da obscuridade de um alvará e não da cobiça ou ódio.
Um excelente caráter o Coelho. Os únicos desafeiçoados que tinha era alguns sujeitos, dizendo-se taciturnos, ou
alegando andar com pressa, mal o viam de longe dobravam as esquinas, entravam nas lojas, etc. Na verdade, ele amava a
boa palestra, a palestra comprida, gostada a sorvos largos, e assim é que nunca estava só, preferindo os que sabiam
dizer duas palavras, mas não desdenhando os outros. O padre Lopes, que cultivava o Dante, e era inimigo do Coelho,
nunca o via desligar-se de uma pessoa que não declamasse e emendasse este trecho:

La bocca sollevò dal fiero pasto

Quel “seccatore”…

 

mas uns sabiam do ódio do padre, e outros pensavam que isto era uma oração em latim.

 

VI

A rebelião

 

Cerca de trinta pessoas ligaram-se ao barbeiro, redigiram e levaram uma representação à Câmara.

A Câmara recusou aceitá-la, declarando que a Casa Verde era uma instituição pública, e que a ciência não podia
ser emendada por votação administrativa, menos ainda por movimentos de rua.

— Voltai ao trabalho, concluiu o presidente, é o conselho que vos damos.

A irritação dos agitadores foi enorme. O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião, e destruir a
Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que
muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa
Verde; que o despotismo científico do alienista complicava-se do espírito de ganância, visto que os loucos ou supostos
tais não eram tratados de graça: as famílias, e em falta delas, a câmara pagavam ao alienista…

— É falso! interrompeu o presidente.

— Falso?

— Há cerca de duas semanas recebemos um ofício do ilustre médico em que nos declara que, tratando de
fazer experiências de alto valor psicológico, desiste do estipêndio votado pela câmara, bem como nada receberá das
famílias dos enfermos.

A notícia deste ato tão nobre, tão puro, suspendeu um pouco a alma dos rebeldes. Seguramente o alienista podia
estar em erro, mas nenhum interesse alheio à ciência o instigava; e para demonstrar o erro, era preciso alguma coisa
mais do que arruaças e clamores. Isto disse o presidente, com aplauso de toda a câmara. O barbeiro, depois de
alguns instantes de concentração, declarou que estava investido de um mandato público e não restituiria a paz a Itaguaí
antes de ver por terra a Casa Verde — “essa bastilha da razão humana” — expressão que ouvira a um poeta local, e que
ele repetiu com muita ênfase. Disse, e a um sinal todos saíram com ele.

Imagine-se a situação dos vereadores; urgia obstar ao ajuntamento, à rebelião, à luta, ao sangue. Para acrescentar
ao mal, um dos vereadores que apoiara o presidente, ouvindo agora a denominação dada pelo barbeiro à Casa Verde
— “Bastilha da razão humana”, — achou-a tão elegante, que mudou de parecer. Disse que entendia de bom aviso
decretar alguma medida que reduzisse a Casa Verde; e porque o presidente, indignado, manifestasse em termos enérgicos
o seu pasmo, o vereador fez esta reflexão:

— Nada tenho que ver com a ciência; mas, se tantos homens em quem supomos juízo, são reclusos por dementes,
quem nos afirma que o alienado não é o alienista?

 

Sebastião Freitas, o vereador dissidente, tinha o dom da palavra e falou ainda por algum tempo, com prudência
mas com firmeza. Os colegas estavam atônitos; o presidente pediu-lhe que, ao menos, desse o exemplo da ordem e
do respeito à lei, não aventasse as suas idéias na rua, para não dar corpo e alma à rebelião, que era por ora um
turbilhão de átomos dispersos. Esta figura corrigiu um pouco o efeito da outra: Sebastião Freitas prometeu suspender
qualquer ação, reservando-se ao direito de pedir pelos meios legais a redução da Casa Verde. E repetia consigo, namorado:
— Bastilha da razão humana!

Entretanto a arruaça crescia. Já não eram trinta, mas trezentas pessoas que acompanhavam o barbeiro, cuja
alcunha familiar deve ser mencionada, porque ele deu o nome à revolta: chamavam-lhe o Cangica, — e o movimento
ficou célebre com o nome de revolta dos Cangicas. A ação podia ser restrita, — visto que muita gente, ou por medo, ou
por hábitos de educação não descia à rua; mas o sentimento era unânime, ou quase unânime, e os trezentos
que caminhavam para a Casa Verde, — dada a diferença de Paris a Itaguaí, — podiam ser comparados aos que tomaram
a Bastilha.

D. Evarista teve notícia da rebelião antes que ela chegasse; veio dar-lhe uma de suas crias. Ela provava nessa
ocasião um vestido de seda, — um dos trinta e sete que trouxera do Rio de Janeiro, — e não quis crer.

— Há de ser alguma patuscada, dizia ela mudando a posição de um alfinete. Benedita, vê se a barra está boa.

— Está, sinhá, respondia a mucama de cócoras no chão, está boa. Sinhá vira um bocadinho. Assim. Está muito boa.

— Não é patuscada, não, senhora; eles estão gritando; — Morra o Dr. Bacamarte! o tirano! dizia o moleque assustado.

— Cala a boca, tolo! Benedita, olha aí do lado esquerdo; não parece que a costura está um pouco enviesada? A
risca azul não segue até abaixo; está muito feio assim; é preciso descoser para ficar igualzinho e…

— Morra o Dr. Bacamarte! morra o tirano! uivavam fora trezentas vozes. Era a rebelião que desembocava na Rua Nova.

D. Evarista ficou sem pinga de sangue. No primeiro instante não deu um passo, não fez um gesto; o terror
petrificou-a. A mucama correu instintivamente para a porta do fundo. Quanto ao moleque, a quem D. Evarista não dera
crédito, teve um instante de triunfo súbito, imperceptível, entranhado, de satisfação moral, ao ver que a realidade vinha
jurar por ele.

— Morra o alienista! — bradavam as vozes mais perto. D. Evarista, se não resistia facilmente às comoções de
prazer, sabia entestar com os momentos de perigo. Não desmaiou; correu à sala interior onde o marido estudava. Quando
ela ali entrou, precipitada, o ilustre médico escrutava um texto de Averróis, os olhos dele empanados pela
cogitação, subiam do livro ao teto e baixavam do teto ao livro, cegos para a realidade exterior, videntes para os
profundos trabalhos mentais. D. Evarista chamou pelo marido duas vezes, sem que ele lhe desse atenção; à terceira, ouviu
e perguntou-lhe o que tinha, se estava doente.

— Você não ouve esses gritos? perguntou a digna esposa em lágrimas.

O alienista atendeu então; os gritos aproximavam-se, terríveis, ameaçadores; ele compreendeu tudo. Levantou-se
da

cadeira de espaldar em que estava sentado, fechou o livro, e a passo firme e tranqüilo, foi depositá-lo na estante.
Como a introdução do volume desconcertasse um pouco a linha dos dois tomos contíguos, Simão Bacamarte cuidou
de corrigir este defeito mínimo, e, aliás, interessante. Depois disse à mulher que se recolhesse, que não fizesse nada.

— Não, não, implorava a digna senhora, quero morrer ao lado de você…

Simão Bacamarte teimou que não, que não era o caso de morte; e ainda que o fosse, intimava-lhe, em nome da
vida, que ficasse. A infeliz dama curvou a cabeça, obediente e chorosa.

 

— Abaixo a Casa Verde! bradavam os Cangicas.

O alienista caminhou para a varanda da frente e chegou ali no momento em que a rebelião também chegava e
parava, defronte, com as suas trezentas cabeças rutilantes de civismo e sombrias de desespero. — Morra! morra! bradaram
de todos os lados, apenas o vulto do alienista assomou na varanda. Simão Bacamarte fez um sinal pedindo para falar;
os revoltosos cobriram-lhe a voz com brados de indignação. Então o barbeiro, agitando o chapéu, a fim de impor
silêncio à turba, conseguiu aquietar os amigos, e declarou ao alienista que podia falar, mas acrescentou que não abusasse
da paciência do povo como fizera até então.

— Direi pouco, ou até não direi nada, se for preciso. Desejo saber primeiro o que pedis.

— Não pedimos nada, replicou fortemente o barbeiro; ordenamos que a Casa Verde seja demolida, ou pelo
menos despojada dos infelizes que lá estão.

— Não entendo.

— Entendeis bem, tirano; queremos dar liberdade às vítimas do vosso ódio, capricho, ganância…

O alienista sorriu, mas o sorriso desse grande homem não era coisa visível aos olhos da multidão; era uma
contração leve de dois ou três músculos, nada mais. Sorriu e respondeu:

— Meus senhores, a ciência é coisa séria, e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão dos meus atos de
alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a
ouvir-vos; mas, se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão
dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não
farei a leigos nem a rebeldes.

Disse isto o alienista, e a multidão ficou atônita; era claro que não esperava tanta energia e menos ainda
tamanha serenidade. Mas o assombro cresceu de ponto quando o alienista, cortejando a multidão com muita gravidade,
deu-lhe as costas e retirou-se lentamente para dentro. O barbeiro tornou logo a si, e, agitando o chapéu, convidou os
amigos à demolição da Casa Verde; poucas vozes e frouxas lhe responderam. Foi nesse momento decisivo que o
barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando
a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor
de Itaguaí. Desde alguns anos que ele forcejava por ver o seu nome incluído nos pelouros para o sorteio dos
vereadores, mas era recusado por não ter uma posição compatível com tão grande cargo. A ocasião era agora ou nunca.
Demais, fora tão longe na arruaça que a derrota seria a prisão, ou talvez a forca ou o degredo. Infelizmente, a resposta do
alienista diminuíra o furor dos sequazes. O barbeiro, logo que o percebeu, sentiu um impulso de indignação, e quis
bradar-lhes: — Canalhas! covardes! — mas conteve-se, e rompeu deste modo:

— Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está nas vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o
cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a
pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno.

E a multidão agitou-se, murmurou, bradou, ameaçou, congregou-se toda em derredor do barbeiro. Era a revolta
que tornava a si da ligeira síncope, e ameaçava arrasar a Casa Verde.

— Vamos! bradou o Porfírio agitando o chapéu.

— Vamos! repetiram todos.

Deteve-os um incidente: era um corpo de dragões que, a marche-marche, entrava na Rua Nova.

 

VII

O inesperado

 

Chegados os dragões em frente aos Cangicas houve um instante de estupefação; os Cangicas não queriam crer
que a Força Pública fosse mandada contra eles; mas o barbeiro compreendeu tudo e esperou. Os dragões pararam, o
capitão intimou à multidão que se dispersasse; mas, conquanto uma parte dela estivesse inclinada a isso, a outra parte
apoiou fortemente o barbeiro, cuja resposta consistiu neste termos alevantados:

— Não nos dispersaremos. Se quereis os nossos cadáveres, podeis tomá-los; mas só os cadáveres; não levareis a
nossa honra, o nosso crédito, os nossos direitos, e com eles a salvação de Itaguaí.

Nada mais imprudente do que essa resposta do barbeiro; e nada mais natural. Era a vertigem das grandes crises.
Talvez fosse também um excesso de confiança na abstenção das armas por parte dos dragões; confiança que o
capitão dissipou logo, mandando carregar sobre os Cangicas. O momento foi indescritível. A multidão urrou furiosa;
alguns, trepando às janelas das casas, ou correndo pela rua fora, conseguiram escapar; mas a maioria ficou bufando de
cólera, indignada, animada pela exortação do barbeiro. A derrota dos Cangicas estava iminente, quando um terço dos
dragões, — qualquer que fosse o motivo, as crônicas não o declaram, — passou subitamente para o lado da rebelião.
Este inesperado reforço deu alma aos Cangicas, ao mesmo tempo que lançou desânimo às fileiras da legalidade.
Os

soldados fiéis não tiveram coragem de atacar os seus próprios camaradas, e, um a um, foram passando para eles,
de modo que, ao cabo de alguns minutos, o aspecto das coisas era totalmente outro. O capitão estava de um lado,
com alguma gente, contra uma massa compacta que o ameaçava de morte. Não teve remédio, declarou-se vencido
e entregou a espada ao barbeiro.

A revolução triunfante não perdeu um só minuto; recolheu os feridos às casas próximas, e guiou para a câmara.
Povo e tropa fraternizavam, davam vivas a el-rei, ao vice-rei, a Itaguaí, ao “ilustre Porfírio”. Este ia na frente,
empunhando tão destramente a espada, como se ela fosse apenas uma navalha um pouco mais comprida. A vitória cingia-lhe a
fronte de um nimbo misterioso. A dignidade do governo começava a enrijar-lhe os quadris.

Os vereadores, às janelas, vendo a multidão e a tropa, cuidaram que a tropa capturara a multidão, e sem mais
exame, entraram e votaram uma petição ao vice-rei para que se mandasse dar um mês de soldo aos dragões, “cujo
denodo salvou Itaguaí do abismo a que o tinha lançado uma cáfila de rebeldes”. Esta frase foi proposta por Sebastião
Freitas, o vereador dissidente cuja defesa dos Cangicas tanto escandalizara os colegas. Mas bem depressa a ilusão se
desfez. Os vivas ao barbeiro, os morras aos vereadores e ao alienista, vieram dar-lhes notícia da triste realidade. O
presidente não desanimou: — Qualquer que seja a nossa sorte, disse ele, lembremo-nos que estamos a serviço de Sua
Majestade e do povo. — Sebastião insinuou que melhor se poderia servir à coroa e à vida saindo pelos fundos e indo
conferenciar com o juiz de fora, mas toda a câmara rejeitou esse alvitre.

Daí nada o barbeiro, acompanhado de alguns de seus tenentes, entrava na sala da vereança e intimava à câmara
sua queda. A câmara não resistiu, entregou-se e foi dali para a cadeia. Então os amigos do barbeiro propuseram-lhe
que assumisse o governo da vila em nome de Sua Majestade. Porfírio aceitou o encargo, embora não
desconhecesse (acrescentou) os espinhos que trazia; disse mais que não podia dispensar o concurso dos amigos presentes; ao que
eles prontamente anuíram. O barbeiro veio à janela, e comunicou ao povo essas resoluções, que o povo
ratificou, aclamando o barbeiro. Este tomou a denominação de — “Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do Povo”.
— Expediram-se logo várias ordens importantes, comunicações oficiais do novo governo, uma exposição minuciosa
ao vice-rei, com muitos protestos de obediência às ordens de Sua Majestade; finalmente uma proclamação ao povo,
curta, mas enérgica:

“Itaguaienses!

“Uma Câmara corrupta e violenta conspirava contra os interesses de Sua Majestade e do povo. A opinião pública
tinha-a condenado; um punhado de cidadãos, fortemente apoiados pelos bravos dragões de Sua Majestade, acaba de
a dissolver ignominiosamente, e por unânime consenso da vila foi-me confiado o mando supremo, até que
Sua Majestade se sirva ordenar o que parecer melhor ao seu real serviço. Itaguaienses! não vos peço senão que me
rodeeis de confiança, que me auxilieis em restaurar a paz e a fazenda pública, tão desbaratada pela câmara que ora findou
às vossas mãos. Contai com o meu sacrifício, e ficai certos de que a coroa será por nós.

 

O Protetor da vila em nome de Sua Majestade e do povo

PORFÍRIO CAETANO DAS NEVES.”

 

Toda a gente advertiu no absoluto silêncio desta proclamação acerca da Casa Verde; e, segundo uns, não podia
haver mais vivo indício dos projetos tenebrosos do barbeiro. O perigo era tanto maior quanto que, no meio mesmo
desses graves sucessos, o alienista metera na Casa Verde umas sete ou oito pessoas, entre elas duas senhoras e sendo um
dos homens aparentado com o Protetor. Não era um repto, um ato intencional; mas todos o interpretaram dessa
maneira; e a vila respirou com uma esperança de que o alienista dentro de vinte e quatro horas estaria a ferros e destruído
o terrível cárcere.

O dia acabou alegremente. Enquanto o arauto da matraca ia recitando de esquina em esquina a proclamação, o
povo espalhava-se nas ruas e jurava morrer em defesa do ilustre Porfírio. Poucos gritos contra a Casa Verde, prova
de confiança na ação do governo. O barbeiro fez expedir um ato declarando feriado aquele dia, e entabulou
negociações com o vigário para a celebração de um Te-Deum, tão conveniente era aos olhos dele a conjunção do poder
temporal com o espiritual; mas o padre Lopes recusou abertamente o seu concurso.

— Em todo o caso, Vossa Reverendíssima não se alistará entre os inimigos do governo? disse-lhe o barbeiro,
dando à fisionomia um aspecto tenebroso.

Ao que o padre Lopes respondeu, sem responder:

— Como alistar-me, se o nosso governo não tem inimigos?

O barbeiro sorriu; era a pura verdade. Salvo o capitão, os vereadores e os principais da vila, toda a gente o
aclamava. Os mesmos principais, se o não aclamavam, não tinham saído contra ele. Nenhum dos almotacés deixou de vir
receber as suas ordens naquele dia que ia enfim libertar Itaguaí da Casa Verde e do terrível Simão Bacamarte.

(Second of three parts. O Alienista was originally published in
Papéis Avulsos, a collection of short stories
by Machado de Assis.)

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