Site icon

Literature: Jorge Amado’s Dona Flor and Her Two Husbands

Vadinho, Dona Flor’s first husband died on a Sunday of Carnaval, in the
morning, when, wearing a Bahiana costume, he
was sambaing in a bloco, happy as ever, not far from home.

Vadinho, Dona Flor’s first husband died on a Sunday of Carnaval, in the
morning, when, wearing a Bahiana costume, he
was sambaing in a bloco, happy as ever, not far from home.

 

Vadinho, o primeiro marido de dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã, quando,
fantasiado de baiana, sambava num bloco, na maior
animação, no Largo Dois de Julho,
não longe de sua casa. Não pertencia ao bloco,
acabara de nele misturar-se, em companhia de mais
quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um
bar no Cabeça onde o uísque correra farto à custa de
um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e
perdulário.

O bloco conduzia uma pequena e afinada
orquestra de violões e flautas; ao cavaquinho, Carlinhos
Mascarenhas, magricela celebrado nos castelos, ah! um cavaquinho
divino. Vestiam-se os rapazes de ciganos e as moças de camponesas húngaras
ou rumenas; jamais, porém, húngara
ou rumena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas,
cabrochas na flor da idade e da faceirice.

Vadinho, o mais animado de todos, ao ver o bloco despontar na esquina e
ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho sublime,
adiantou-se rápido, postou-se ante a rumena carregada na cor, uma grandona,
monumental como uma igreja e era a Igreja de São Francisco, pois se cobria com
um desparrame de lantejoula doirada , anunciou:

— Lá vou eu, minha russa do Tororó…

O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrilhos e miçangas,
festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as flautas e os
violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar entusiasmo,
característico de tudo quanto fazia, exceto trabalhar. Rodopiava em meio ao
bloco, sapateava em frente à mulata,
avançava para ela em floreios e umbigadas,
quando, de súbito, soltou uma espécie de
ronco surdo, vacilou nas pernas, adernou de um lado, rolou no chão, botando
uma baba amarela pela boca onde o esgar da morte não conseguia apagar de todo
o satisfeito sorriso do folião definitivo
que ele fora.

 

Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do
fazendeiro: não seriam aquelas quatro ou cinco
doses capazes de possuir bebedor da classe de Vadinho; porém toda a cachaça
acumulada desde a véspera ao meio-dia
quando oficialmente inauguraram o carnaval no Bar Triunfo, na Praça Municipal,
subindo toda ela de uma vez e derrubando-o adormecido. Mas a mulata grandona
não se deixou enganar: enfermeira de profissão estava acostumada com
a morte, freqüentava-a diariamente no hos
pital. Não, porém, tão
íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de pinicar-lhe o
olho, de sambar com ela. Curvou-se sobre Vadinho,
colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio
no ventre e na espinha:

— Tá morto, meu Deus!

Outros tocaram também o corpo do moço,
tomaram-lhe do pulso, suspenderam-lhe a cabeça de
melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do coração. Nada
obtiveram, era sem jeito, Vadinho desertara para sempre
do Carnaval da Bahia.

2

Foi um rebuliço no bloco e na rua, um corre-corre
pelas redondezas, um deus-nos-acuda a sacudir os
carnavalescos e ainda por cima a escandalosa Anete,
professorinha romântica e histérica, aproveitou a boa oportunidade para
um chilique, com pequenos gritos agudos e ameaças de desmaio. Toda
aquela representação em honra do
dengoso Carlinhos Mascarenhas, por quem suspirava a melindrosa de faniquito
fácil dizendo-se ela própria
ultra-sensível, arrepiando-se como uma gata
quando ele dedilhava o cavaquinho. Cavaquinho agora silencioso, pendendo inútil
das mãos do artista, como se Vadinho houvesse levado consigo para o
outro mundo seus derradeiros acordes.

Veio gente correndo de todos os lados, logo a notícia circulou
pelas imediações, chegou a São Pedro,
à Avenida Sete, ao Campo Grande, arrebanhando curiosos. Em torno
ao cadáver reunia-se uma pequena
multidão a acotovelar-se em comentários.
Um médico residente no Sodré foi
requisitado e um guarda-de-trânsito sacou de
um apito e nele soprava sem parar como a advertir a cidade inteira, a todo
o Carnaval, do fim de Vadinho.

“Pois se é Vadinho, coitadinho
dele”, constatou um careta, com sua
máscara de meia, perdida a animação.
Todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua alegria esfuziante,
seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto sobretudo
nos lugares onde se bebia, jogava, e farreava; e ali, tão perto de sua residência,
não havia quem não o identificasse.

Outro mascarado, este vestido de aniagem e coberto com uma
cabeçorra de urso, varou o cerrado grupo,
conseguiu aproximar-se e ver. Arrancou a
máscara deixando exposta uma cara aflita,
de bigodes caídos e crânio careca e murmurou:

— Vadinho, meu irmãozinho, que foi que te fizeram?

“Que foi que deu nele, de que morreu?” perguntavam-se uns aos
outros, e havia quem respondesse: “foi
cachaça”, numa explicação por demais fácil
para tão inesperada morte. Uma velha
curvada

parou também, deu sua olhadela, constatou:

— Tão moderno ainda, por que morrer tão moço?

Perguntas e respostas cruzavam-se,
enquanto o médico colocava o ouvido sobre o peito de Vadinho, numa
constatação final e inútil.

 

“Estava sambando, numa
animação retada, e sem avisar nada a
ninguém, caiu de lado já todo cheio da morte,”
explicou um dos quatro amigos, curado por completo da cachaça, de súbito
sóbrio e comovido, meio sem jeito nas
roupas femininas de baiana, as faces vermelhas de carmim, fundas olheiras
negras, traçadas com cortiça queimada, sob
os olhos.

O fato de estarem fantasiados de baiana não deve levar a maliciar-se
sobre os cinco rapazes, todos eles de macheza comprovada. Vestiam-se de baiana
para melhor brincar, por farsa e molecagem, e não por tendência ao efeminado,
a suspeitas esquisitices. Não havia chibungo entre eles, benza
Deus. Vadinho, inclusive, amarrara sob a anágua branca e engomada, enorme
raiz de mandioca e, a cada passo, suspendia as saias e exibia o troféu descomunal
e pornográfico fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto e o
riso, com maliciosa vergonha. Agora a raiz pendia abandonada sobre a coxa
descoberta e não fazia ninguém rir. Um
dos amigos veio e a desatou da cintura de Vadinho. Mas nem assim o defunto
ficou decente e recatado, era um morto de Carnaval e não exibia sequer sangue
de bala ou de facada a escorrer-lhe do peito, capaz de resgatar seu ar de mascarado.

Dona Flor, precedida, é claro, por dona Norma a dar ordens e a
abrir caminho, chegou quase ao mesmo tempo que a polícia. Quando despontou
na esquina, apoiada nos braços
solidários das comadres, todos adivinharam a
viúva, pois vinha suspirando e gemendo, sem tentar controlar os soluços, num
pranto desfeito. Ao demais, trajava o robe caseiro e bastante usado com que
cuidava do asseio do lar, calçava chinelas
cara-de-gato e ainda estava despenteada. Mesmo assim era bonita, agradável
de ver-se: pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a cor bronzeada
de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros
a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um
tanto abertos sobre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o
próprio Vadinho em seus dias de ternura,
raros talvez porém inesquecíveis. Quem
sabe, devido às atividades culinárias da
esposa, nesses idílios

Vadinho dizia-lhe “meu manuê de milho verde, meu acarajé cheiroso,
minha franguinha gorda”, e tais
comparações gastronômicas davam justa idéia de
certo encanto sensual e caseiro de dona Flor a esconder-se sob uma natureza
tranqüila e dócil. Vadinho conhecia-lhe
as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida,
aquele recatado desejo fazendo-se violência
e mesmo incontinência ao libertar-se na carne. Quando
Vadinho estava de veia, não existia ninguém mais encantador
e nenhuma mulher sabia resistir-lhe. Dona Flor jamais
conseguira recusar-se a seu fascínio nem mesmo se a tanto se
dispunha cheia de indignação e de
raiva recentes. Pois, em repetidas ocasiões, chegara a odiá-lo e
a arrenegar o dia em que unira sua sorte à do boêmio.

Mas andando agoniada, ao encontro da intempestiva
morte de Vadinho, dona Flor ia zonza, vazia de pensamentos, de nada
se recordava, nem dos momentos de densa ternura, menos ainda
dos dias cruéis, de angústia e
solidão, como se ao expirar ficasse o marido despojado de todos
os defeitos ou como se não os houvesse possuído em “sua
breve passagem por este vale de lágrimas”.

“Foi breve sua passagem por esse vale de lágrimas”,
pronunciou o respeitável professor Epaminondas Souza Pinto
afetado e afobado, tentando cumprimentar a viúva, dar-lhe os pêsames,
antes mesmo dela chegar junto ao corpo do marido. Dona
Gisa, também professora e até certo ponto também respeitável,
conteve o açodamento do colega e conteve o riso. Se em
verdade fora breve a passagem de Vadinho pela vida vinha de
completar trinta e um anos , para ele, dona Gisa bem o sabia, não fora
o mundo vale de lágrimas e, sim, palco de farsas, engodos,
embustes e pecados. Alguns deles aflitos e confusos, sem dúvida,
submetendo seu coração a
árduas provas, a agonias e sobressaltos: dívidas a pagar, promissórias
a descontar, avalistas a convencer, compromissos assumidos,
prazos improrrogáveis, protestos e cartórios, bancos e agiotas,
caras amarradas, amigos esquivando-se, sem falar nos
sofrimentos físicos e morais de dona Flor. Porque, considerava dona
Gisa em seu português arrevesado era vagamente
norte-americana naturalizara-se e se sentia brasileira mas o diabo da língua
ah! não conseguia dominá-la , se houvera lágrimas na breve
passagem de Vadinho pela vida, elas tinham sido choradas por
dona Flor e foram muitas, davam de sobra para o casal.

Diante de tão súbita morte, dona Gisa não pensava
em Vadinho senão com saudade: era-lhe simpático, apesar de
tudo; possuía um lado gentil e cativante. Nem por isso, no entanto,
nem por ele encontrar-se ali, no Largo Dois de Julho, morto,
estendido na rua, vestido de baiana, iria ela de repente santificá-lo, torcer a
realidade, inventar outro Vadinho feito de um
só pedaço. Assim explicou a dona
Norma, sua vizinha e íntima, mas não obteve
da parceira o esperado apoio. Dona Norma muitas vezes dissera as últimas
a Vadinho, brigava com ele, pregava-lhe sermões monumentais, chegara um dia
a ameaçá-lo com a polícia. Naquela
hora derradeira e aflita, porém, não
desejava comentar as predominantes e desagradáveis facetas do finado, queria
apenas gabar seus lados bons, sua gentileza natural, sua solidariedade sempre pronta
a manifestar-se, sua lealdade para com os amigos, sua indiscutível
generosidade (sobretudo se a praticava com o
dinheiro alheio), sua irresponsável e
infinita alegria de viver. Aliás, tão ocupada
em acompanhar e socorrer dona Flor, nem tinha ouvidos para dona Gisa com
sua dura verdade. Dona Gisa era assim: a verdade acima de tudo, por vezes a
ponto de fazê-la parecer áspera e
inflexível; talvez numa atitude de defesa contra
sua boa fé, pois era crédula ao absurdo
e confiava em todo mundo. Não, não relembrava os malfeitos de Vadinho
para criticá-lo ou condená-lo, gostava dele
e com freqüência perdiam-se os dois em longas prosas, dona Gisa interessada
em apreender a psicologia do submundo onde Vadinho se movimentava, ele
a contar-lhe casos e a espiar-lhe no decote do vestido o nascer dos seios pujantes
e sardentos. Talvez dona Gisa o entendesse melhor que dona Norma, mas,
ao contrário da outra, não lhe
descontava sequer um defeito, não ia mentir só
por que ele morrera. Nem a si própria dona Gisa mentia, a não ser quando isso
se fazia indispensável. E não era o
caso, evidentemente.

Dona Flor atravessava o povo no rastro de dona Norma a abrir
caminho com os cotovelos e com sua extensa popularidade:

— Vai, arreda minha gente, deixa a pobre passar…

Lá estava Vadinho no chão de paralelepípedos, a boca sorrindo,
todo branco e loiro, todo cheio de paz e de inocência. Dona Flor ficou um
instante parada, a contemplá-lo como se
demorasse a reconhecer o marido ou talvez, mais provavelmente, a aceitar o fato,
agora indiscutível, de sua morte.

Mas foi só um instante. Com um berro arrancado do fundo das
entranhas, atirou-se sobre Vadinho, agarrou-se ao corpo imóvel, a beijar-lhe os cabelos,
o rosto pintado de carmim, os olhos abertos, o atrevido bigode, a boca
morta, para sempre morta.

3

Era domingo de carnaval, quem não tinha naquela noite corso de automóveis a fazer, festa onde divertir-se, programa para
a madrugada? Pois bem, com tudo isso, o velório de Vadinho foi um sucesso.
“Um autêntico sucesso”, como
orgulhosamente constatou e proclamou dona Norma.

 

Os homens do rabecão largaram o corpo em cima da cama no quarto
de dormir, só depois os vizinhos o transportaram para a sala. Os tipos do
necrotério estavam apressados, seu trabalho aumentava com o carnaval. Enquanto
os demais se divertiam, eles lidavam com defuntos, com as vítimas de desastres
e de brigas. Arrancaram o lençol imundo a embrulhar o cadáver, entregaram o
laudo à viúva.

Vadinho ficou nu como Deus o pôs no mundo, em cima da cama de casal, uma cama de ferro com cabeceira e pés
trabalhados, comprada em segunda mão por
dona Flor, num leilão de móveis, quando
do casamento, seis anos antes. Dona Flor, sozinha no quarto, abriu o
envelope, estudou o parecer dos médicos.
Balançou a cabeça, incrédula. Quem
diria. Aparentemente tão forte e são, tão
moço ainda!

 

Gabava-se Vadinho de jamais ter estado doente e de ser capaz de
atravessar oito dias e oito noites sem dormir, jogando e bebendo ou na farra
com mulheres. E por vezes não passava realmente oito dias sem aparecer em
casa, deixando dona Flor em desespero, como maluca? No entanto, ali estava o
laudo dos doutores da Faculdade: era um homem condenado, fígado
imprestável, rins estrompados, coração aos
pandarecos. Podia morrer a qualquer momento, como morrera. Assim, de repente.
A cachaça, as noites nos cassinos, a esbórnia, a correria doida, a cata
de dinheiro para o jogo haviam arruinado aquele organismo belo e forte,
deixando-lhe apenas a aparência. Sim,
porque, olhando-o só pelo lado de fora, quem
o julgaria tão implacavelmente liquidado?

Dona Flor contemplou o corpo do marido, antes de chamar os
prestimosos e impacientes vizinhos para a delicada tarefa de vesti-lo. Lá estava ele, nu
como gostava de ficar na cama, uma penugem doirada a cobrir-lhe braços e
pernas, mata de pelos loiros no peito, a cicatriz da navalhada no ombro esquerdo.
Tão belo e másculo, tão sábio no
prazer! Mais uma vez as lágrimas assomaram aos olhos da jovem viúva. Tentou
não pensar no que estava pensando, não
era coisa para dia de velório.

Ao vê-lo assim, porém, largado
sobre o leito, inteiramente nu, não podia
dona Flor, por mais esforço que fizesse,
deixar de recordá-lo como era na hora do
desejo desatado: Vadinho não tolerava peça
de roupa sobre os corpos, nem pudibundo lençol a cobri-los, o pudor não era
seu forte. Quando a chamava para a cama, dizia-lhe: “vamos vadiar, minha
filha”; era o amor, para ele, como uma festa
de infinita alegria e liberdade, à qual se entregava com aquele seu
reconhecido entusiasmo aliado a uma
competência proclamada por múltiplas mulheres,
de diferente condição e classe. Nos primeiros tempos do casamento
dona Flor ficava toda encabulada e sem jeito, pois ele a exigia nuinha por inteiro:

— Onde já se viu vadiar de camisola? Por que tu te esconde? A
vadiação é coisa santa, foi inventada
por Deus no paraíso, tu não sabe?

Não só a despia toda, como, achando pouco, tocava e
brincava com os detalhes de seu corpo de curvas largas e
reentrâncias profundas onde cruzavam-se sombra e luz num jogo de
mistérios. Dona Flor tentava cobrir-se, Vadinho arrancava o lençol
entre risos, expunha-lhe os seios riaw6kx, a formosa bunda, o ventre
quase despido de pelos. Tomava dela como de um brinquedo,
um brinquedo ou um fechado botão de rosa que ele fazia
desabrochar em cada noite de prazer. Dona Flor ia perdendo a
timidez, entregando-se àquela festa lasciva, crescendo em
violência, tornando-se amante animosa e audaz. Nunca, porém,
abandonou por completo a pudicícia e a vergonha; era necessário
reconquistá-la cada vez, pois, apenas desperta dessas loucas audácias
e dos ais de desmaio, voltava a ser tímida e pudorosa esposa.

Naquela hora, a sós com a morte de Vadinho, deu-se
conta dona Flor, então e completamente, de sua viuvez e de que não mais
o teria, nem em seus braços voltaria a desmaiar. Porque desde
o momento do trágico boato transmitido de boca em boca, até
a chegada do rabecão, no fim da tarde, vivera a professora
de culinária uma espécie de sonho mau e ao mesmo tempo um
tanto excitante: o impacto da notícia, a caminhada em prantos até o
Largo Dois de Julho, o encontro com o corpo, a multidão a rodeá-la,
a cuidar dela, a oferecer-lhe solidariedade e conforto, a volta
para casa quase carregada por dona Norma e dona Gisa, pelo
professor Epaminondas e por Mendez, o espanhol do botequim.
Tudo tão rápido e confuso, não
lhe deixara tempo para pensar e realizar por completo a morte
de Vadinho.

O corpo fora levado do Largo para o necrotério, mas nem
assim ela teve um momento de sossego. De repente tornara-se o centro
da vida não só de sua rua mas de todas as artérias adjacentes, e
isso num domingo de carnaval. Até o trazerem de volta,
embrulhado num lençol, o traje de baiana
numa pequena trouxa colorida, dona Flor não parou de receber
pêsames, provas de amizade, gentilezas, numa contínua romaria
de vizinhos, conhecidos e amigos. Dona Norma e dona Gisa
essas abandonaram inteiramente os afazeres de suas casas, já um
tanto descuidados devido ao carnaval, almoços e jantares entregues
ao critério das amas apressadas. Não
despregaram as duas de junto de dona Flor, cada qual mais dedicada
e consoladora.

Lá fora era o carnaval com seus mascarados, seus blocos e ranchos,
suas fantasias ricas ou divertidas. As
músicas das multiplicadas orquestras, os
zé-pereiras, os zabumbas, os blocos, os ranchos, afochês com seus tamborins
e atabaques. De quando em vez, dona Norma não resistia e corria até a
janela debruçava-se, arriscava um olho,
trocava facécias com um mascarado
conhecido, transmitia a notícia da morte de
Vadinho, aplaudia uma fantasia original ou um bloco bonito. Por vezes chamava
dona Gisa, se um rancho particularmente animado surgia na esquina. E quando
o Afochê dos Filhos do Mar, já na parte
da tarde, deu entrada na rua, com sua figuração inesquecível,
acompanhado por grande multidão a sambar, até
dona Flor, as lágrimas mal-contidas, aproximou-se da janela e espiou o afochê
tão anunciado nos jornais, a maior beleza
do carnaval baiano. Espiou mas sem se mostrar, escondida pelas largas
espáduas de dona Gisa. Dona Norma,
esquecida do morto e das conveniências,
batia palmas entusiásticas.

Assim fora durante o dia inteiro, desde a hora da notícia. Até dona
Nancy, argentina retraída, nova na rua,
casada com o dono da fábrica de cerâmicas,
um arrevesado Bernabó, desceu de seu sobrado rico e de sua soberbia,
para oferecer condolências e préstimos a
dona Flor, revelando-se pessoa simpática e educada e trocando com dona
Gisa filosóficas considerações sobre
a brevidade da vida e sua insegurança.

Não tivera dona Flor, como se vê, tempo de refletir em seu novo estado
e nas transformações de sua existência.
Só quando trouxeram Vadinho do
necrotério e o deixaram nu no leito de casal
onde tantas e tantas vezes tinham feito o amor, então, e somente então,
encontrou-se sozinha com a morte do marido e se sentiu viúva. Jamais voltaria ele
a derrubá-la na cama de ferro, arrancando-lhe vestido e combinação, e as
peças mais íntimas, atirando com o lençol
para cima da penteadeira, tomando de cada detalhe de seu corpo, fazendo-a delirar.

— Ah! nunca mais, pensou dona Flor, e sentiu um nó na garganta, um tremor nas pernas, compreendeu então que
tudo terminara. Ficou ali parada, sem palavras e sem lágrimas, despida de
qualquer excitação, distante de toda a
representação a cercar a morte. Apenas ela e
o cadáver nu, ela e a definitiva ausência
de Vadinho. Não ia mais ter de
esperá-lo madrugada a fora, nem de esconder
de suas vistas o dinheiro pago pelas alunas, nem de vigiar suas relações com as
mais bonitas, nem de apanhar dele nos dias de cachaça e mau humor, nem de ouvir
os ácidos comentários dos vizinhos.
Nem de rolar com ele na cama, abrindo-se toda para seu desejo, despindo-se
da roupa, do lençol e do recato para a
festa do amor, a inesquecível festa. O nó
na

garganta, estrangulando; uma dor no peito, aguda punhalada.

Flor, não está na hora de vestir ele? a voz de dona Norma
ressoava urgente no quarto, vinda da sala.
Não tarda chegar visitas…

A viúva abriu a porta, agora estava séria, calada, sem soluços, sem
gemidos, fria e austera. Sozinha no mundo. Os vizinhos entraram para ajudar.
Seu Vivaldo, da funerária “Paraíso em
Flor”, viera pessoalmente entregar o
caixão barato fizera considerável
abatimento, era companheiro de Vadinho nas mesas de roleta e bacará onde jogava ataúdes
e lápides e colaborou com eficácia
e experiência para fazer do boêmio um morto apresentável. Dona Flor a
tudo assistiu sem uma palavra, sem uma lágrima, estava sozinha no mundo.

 

4

O corpo de Vadinho depositado no caixão, levado para a sala de visitas onde haviam improvisado um estrado com
as cadeiras. Seu Vivaldo trouxera flores, contribuição gratuita da funerária.
Dona Gisa arrumou uma saudade roxa entre os dedos cruzados de Vadinho. Seu
Vivaldo considerou para si mesmo o absurdo do gesto: deviam colocar entre os dedos
do morto uma ficha de jogo isso sim. Uma ficha em vez da saudade roxa, e se
em lugar da música e dos risos do carnaval se elevassem por ali perto o ruído
das mesas da roleta, a voz rouquenha do crupiê, o soar das fichas, as
nervosas exclamações dos jogadores, era
bem possível ver-se Vadinho levantar do caixão, sacudir dos ombros sua
morte, como sacudia, num gesto
característico, as complicações a perseguirem-no,
e encaminhar-se para depositar sua ficha no 17, seu número predileto. Que
poderia ele fazer com uma saudade roxa? Logo estaria murcha e fanada, nenhuma
roleta a aceitaria.

Seu Vivaldo não se demorou; carnavalesco obstinado, só abrira
a funerária naquele domingo de festa para atender a um amigo como Vadinho.
Fosse outro o defunto, e se arranjasse como pudesse, não iria ele, Vivaldo,
perturbar seu carnaval.

Muitos perturbaram seus projetos de carnaval. Foi um desfilar de gente
noite a dentro, na sentinela do boêmio.
Alguns vieram por ser Vadinho descendente de ramo pobre e bastardo de uma
família importante, os Guimarães. Um dos
seus avoengos fora senador estadual e mandachuva na política. Um tio seu,
de apelido Chimbo, ocupara o posto de Delegado Auxiliar durante uns
poucos meses. Esse tio, um dos raros
Guimarães a reconhecer Vadinho como parente legítimo, foi quem lhe arranjou
o emprego na Prefeitura: fiscal de jardins, lugar dos mais modestos,
ordenado mísero, não dava para uma noite
gorda no Tabaris. Não é necessário ressaltar
a completa negligência do jovem funcionário municipal: jamais fiscalizara
jardim de nenhuma espécie, só aparecia
na repartição para receber os magros
caraminguás mensais. Ou para tentar o aval impossível do
chefe, para morder os colegas em vinte ou cinqüenta mil-réis. Os
jardins não lhe interessavam, não
tinha tempo a perder com plantas e flores, podiam desaparecer
todos os jardins da cidade, não lhe fariam falta. Ave noturna,
seus canteiros eram as mesas de jogo, e suas flores, como bem
considerara seu Vivaldo, as fichas e os baralhos.

Os que vieram por influência do nome dos Guimarães
podiam-se contar nos dedos, vagos e apressados parentes. Todos
os demais, aquele desfilar sem conta, vinham para despedir-se
de Vadinho, para fitar mais uma vez sua face, sorrir para ele
numa recordação agradável,
dizer-lhe adeus. Porque gostavam dele, desculpavam-lhe as
loucuras, valorizavam seu lado bom.

Um dos primeiros a chegar à noite, vestido a rigor, pois
iria mais tarde levar as filhas, três moças de truz, ao baile de
um grande clube, foi o comendador Celestino, português de
nascimento, banqueiro e exportador. Não passara às carreiras,
como quem cumpre fastidiosa obrigação. Demorara-se na sala,
a conversar, recordando sucessos de Vadinho, após ter
abraçado dona Flor e ter-lhe oferecido seus préstimos. De onde vinha
sua estima pelo pequeno funcionário da Prefeitura, pelo boêmio
dos cabarés de segunda, pelo jogador sempre encalacrado?

Vadinho tinha lábia, que lábia! Certa vez arrancara
a assinatura do próspero lusitano numa promissória de
alguns contos de réis. Não esqueceu
de pagar, pois jamais esquecia as datas de vencimento dos
diversos títulos por ele firmados e espalhados em Bancos e em mãos
de agiotas. Não pôde pagar, o que era diferente. Em geral
nunca podia pagar, e não pagava, no entanto a cada dia o número
dos títulos aumentava, aumentava o número dos avalistas. Como ele
o conseguia?

Celestino não voltara a avalizar, não caía duas vezes
no mesmo conto. Soltava-lhe, no entanto, pelegas de cem,
duzentos e até de quinhentos
mil-réis, quando Vadinho lhe aparecia desesperado, sem tostão e com
a certeza de ser aquele o seu dia de estourar a banca. Outros,
porém, avalizavam duas e três vezes, como se fosse Vadinho o
pagador mais correto, o de melhor cadastro bancário. Todos vencidos por
suas manhas, sua conversa dramática e convincente.

O próprio Zé Sampaio, marido de dona Norma, estabelecido com
loja de sapatos na Cidade Baixa, sujeito de conversa rara, casmurrão, pouco dado
a visitas, a relações e intimidades com
os vizinhos, o oposto da esposa, ele
próprio fora enrolado por Vadinho algumas
vezes e, apesar disso, não lhe retirara nem
a estima nem o crédito na loja.

Nem mesmo quando descobriu a inacreditável sujeira: Vadinho,
certa manhã, comprara fiado em seu estabelecimento vários pares de sapatos,
dos mais finos e caros, e imediatamente os revendera, quase sob as vistas
horrorizadas dos empregados de Sampaio, e por preço ínfimo, a uma loja rival
recém-instalada nas imediações. A
dinheiro batido tratava-se de um Vadinho necessitado de urgente numerário
para jogar no bicho.

O comerciante levou certamente em conta, ao pesar as responsabilidades
do trapaceiro, determinadas atenuantes capazes de explicar e desculpar o deslize.

Um Vadinho alegre e despreocupado, naquela mesma tarde, contou-lhe
ter sonhado durante toda a noite com dona Gisa, transformada em avestruz,
a persegui-lo numa campina sem fim, não sabia exatamente se na intenção de
vadiar com ele nos pastos verdes era um avestruz fêmea e em seus olhos
brilhava uma luz velhaca ou se pretendia devorá-lo a bicadas, pois o
perseguia com o enorme bico aberto e
ameaçador. Acordava agoniado, sacudia o
sonho fora, tentava dormir pensando em assunto mais ameno, e lá voltava a
renitente professora a correr atrás dele com o
olho libertino e o bico agressivo. Estivesse dona Gisa em seu quotidiano
invólucro carnal e Vadinho não fugiria,
enfrentaria a parada, emprenharia o diabo da
gringa em cima dos matos, com todo seu acento e seus conhecimentos de psicologia.
Mas com ela vestida de penas, virada num avestruz descomunal, não lhe
restava alternativa, além da vergonhosa
retirada. Quatro, cinco vezes repetiu-se o pesadelo, e de manhã, cansado de
tanto correr, banhado em suor, viu-se Vadinho com o palpite mais certeiro e sem
tostão. Vasculhou a casa, dona Flor estava
lisa, ele levara-lhe na véspera até as
moedas. Saiu na esperança de morder uns conhecidos, a praça revelou-se
fraquíssima, Vadinho andara abusando ultimamente de seu parco crédito. Foi
quando, ao passar ante a Casa Stela, a bem sortida loja de Zé Sampaio, ocorreu-lhe a
idéia luminosa e divertida de dedicar-se
por breve prazo ao honesto negócio de sapataria, única maneira de
obter rapidamente uns trocados.

Não houvesse empreendido a
operação comercial,
desonesta e desastrada na aparência, em verdade sutil e lucrativa,
e jamais se perdoaria, pois deu o avestruz dona Gisa não mentia nem em
sonhos e Vadinho cobrou um dinheiro alto. Agradecido e digno, procurou em
seguida Zé Sampaio na loja e, ante os
empregados atônitos, pagou-lhe o valor da
mercadoria comprada pela manhã, comentou a rir
o golpe primoroso e o convidou para um trago comemorativo. Zé
Sampaio declinou do convite mas não se
zangou com Vadinho, continuou a dar-se com ele e a vender-lhe sapatos com
desconto e a prazo. Abatimento de dez por cento no valor da conta, crédito limitado a
um par de sapatos em cada compra e só
após ter sido liquidada a fatura anterior.

Prova ainda mais impressionante do prestígio de Vadinho foi ter Zé Sampaio comparecido à sentinela. Por breves minutos, é
verdade, mas era aquele o primeiro velório
do comerciante nos últimos dez anos. Tinha horror a todo e a qualquer
compromisso social, sobretudo a cerimônias
fúnebres, velórios, cemitérios, missas de
sétimo dia, o que levava dona Norma a
gritar-lhe quando ele se recusava a
acompanhá-la a um de seus vários enterros semanais:

— Quando você morrer, Sampaio, não vai ter gente nem para carregar
o caixão… Vai ser uma vergonha.

Zé Sampaio punha-lhe um olhar torvo, não respondia, o dedo grande
da mão direita metido entre os dentes, num gesto seu, habitual, de resignação ante
o perpétuo alvoroço da esposa.

 

Compareceram os importantes, como Celestino e Zé Sampaio, como o
parente Chimbo, o arquiteto Chaves, o dr. Barreiros, proeminente figura da
Justiça, e o poeta Godofredo Filho.
Chegaram incorporados os colegas da repartição,
a todos eles Vadinho devia pequenas quantias. A comandá-los, oratório
e solene, veio o ilustre Diretor dos Parques e Jardins, trajando terno preto.
Vieram os vizinhos, os ricos e os pobres, os remediados também. E vieram
todos quantos na Bahia naquele então
freqüentavam os cassinos de jogo, os cabarés,
as bancas de bicho, as alegres casas de mulheres: Mirandão, Curvelo, Pé
de Jegue, Waldomiro Lins e seu jovem irmão Wilson, Anacreon,
Cardoso Pereba, Arigof, Pierre Verger com seu perfil de pássaro e seus mistérios de
Ifá. Alguns, como o doutor Giovanni Guimarães, médico e jornalista,
pertenciam aos dois grupos, familiares dos grandes e dos pequenos, dos
respeitáveis e dos irresponsáveis.

Os importantes recordaram Vadinho entre risos, suas histórias cheias
de picardia e de malícia, seus golpes divertidos, suas trampolinagens
atrevidas, suas atrapalhações e confusões, e
seu bom coração, sua gentileza, sua
graça inconseqüente. Também os
vizinhos assim o relembravam: boêmio sem horário e sem limites. Uns e
outros ampliavam a realidade, inventavam detalhes, atribuiam-lhe casos e
aventuras, a lenda de Vadinho começava a
nascer ali junto de seu corpo, quase na hora mesmo de sua morte. O citado
doutor Giovanni Guimarães imaginava
pedaços inteiros de histórias, floreava
os acontecidos, era chegado a uma mentirazinha bem apoiada em datas e
locais precisos:

— Um dia, há quatro anos passados, no mês de março, encontrei Vadinho
na casa de Três Duques, jogando no 17. Estava vestido com uma
capa de borracha, por baixo não tinha roupa nenhuma, nuzinho.
Botara tudo no prego, empenhara calça e paletó, camisa e cueca, para
poder jogar. Ramiro, aquele espanhol canguinha do Setenta e Sete,
só queria aceitar a calça e o
paletó, que diabo iria fazer com uma camisa de colarinho puído,
uma velha cueca, uma gravata vagabunda? Mas Vadinho lhe
impingiu até o par de meias, guardou apenas os sapatos. E tinha
tanto mel na língua que conseguiu que Ramiro, aquela fera que
vocês conhecem, lhe emprestasse uma capa de borracha quase nova
pois não ia sair nu, rua a fora, em direção à casa de Três Duques…

E ganhou? queria saber o jovem Artur, filho de seu

Sampaio e de dona Norma, ginasiano e admirador de
Vadinho, a ouvir boquiaberto o relato do jornalista.

Doutor Giovanni olhou o moço, fez uma pausa, sorriu com o rosto todo:

— Qual o quê… Pela madrugada perdeu a capa do
espanhol no 17 e foi trazido para casa embrulhado nas folhas de
um jornal… o sorriso transformava-se num riso sonoro,
contagioso, ninguém igual a doutor Giovanni para animar uma
sentinela.

E como naquele momento entrasse na sala o
inumerável Robato, o jornalista acrescentou a prova final, as palavras
ainda molhadas do riso:

— Está aí quem não me deixa mentir… Você ainda se lem
bra, Robato, daquela noite em que Vadinho foi nu para casa,
enrolado num jornal?

Robato não era homem de vacilar: circundou o olhar
em torno, examinando o grupo acomodado num canto da sala
de jantar; temeroso de ouvidos femininos e indiscretos,
não fossem chegar à desolada
viúva tais recordações; mas vacilar
não vacilou, não era de recusar desafios, tinha o repente
fácil, pegou a deixa no ar:

— Nu, enrolado num jornal? Ora, se me recordo…
pigarreou para aclarar a voz barroca e desatar a imaginação Pois se a
gazeta era minha… Foi no castelo de Eunice Um Dente Só. Além
de nós dois e de Vadinho, me lembro de Carlinhos Mascarenhas,
de Jenner e de Viriato Tanajura… A gente tinha bebido a noite
inteira, um pifa sem medida…

Era esse Robato um notívago da força de Vadinho, de
outra estirpe, porém. Não o tentava
o jogo nem fugia ao trabalho, ao contrário, homem de sete
instrumentos, tinha fama de ativo e competente. Fabricava dentaduras, consertava
rádios e vitrolas, tirava retratos para
carteiras, bulia em tudo quanto era máquina,
cheio de hábil curiosidade. Sua roleta era
a poesia, bem metrificada e bem rimada (rimas ricas), seu cassino os bares
e cabarés onde atravessava as madrugadas na amena companhia de outros
tenazes literatos e de raparigas simpatizantes das musas e de seus cultores, a
declamar odes, cantos libertários, poemas líricos
e lúbricos, sonetos de amor. Tudo de sua autoria. Ele mesmo proclamara-se
“rei mundial do soneto”, batera todos os recordes conhecidos, autor até
aquela data de vinte mil oitocentos e sessenta e cinco sonetos, entre decassílabos
e alexandrinos, de arte-menor e de arte-maior, e anacíclicos. Um princípio
de calva ameaçava-lhe a cabeleira morena de vate mas não lhe diminuía a
simpatia radiosa.

Tomou da palavra e novamente Vadinho atravessava a sala envolto
em jornais, não mais iria esquecê-lo o
jovem Artur, dele se recordaria para sempre: embrulhado nas folhas de “A
Tarde”, Vadinho, herói de um mundo proibido
e fascinante.

Sucediam-se as histórias enquanto dona Norma, dona Gisa, a
casadoira Regina, outras moças e senhoras,
serviam cafezinho com bolos, cálices de
cachaça e de licor de frutas. A
vizinhança providenciara para que nada faltasse
ao velório.

Os importantes, sentados na sala de jantar, no corredor, na porta da
rua, relembravam Vadinho entre anedotas e risos. Os outros, os parceiros de jogo
e de malandragem, recordavam-no em silêncio, sérios e comovidos,
demoravam na sala de visitas, de pé, ao lado
do corpo. Ao entrar, paravam ante dona Flor, apertavam-lhe a mão,
encabulados, como se fossem responsáveis pelos
mal-feitos de Vadinho. Muitos deles não a conheciam sequer, nunca a tinham
visto, mas de tanto ouvirem falar nela, sabiam como por vezes Vadinho tomava-lhe
até o dinheiro das despesas para jogá-lo
no Pálace, no Tabaris, no Abaixadinho, no antro de Zezé Meningite, no de
Abílio Moqueca, nas múltiplas roletas
ilegais da cidade, inclusive na mal afamada casa de tavolagem do negro
Paranaguá Ventura, onde por princípio só
o banqueiro devia ganhar.

Figura torva e amedrontadora essa do negro Paranaguá Ventura com suas incontáveis entradas na polícia, um rol de
acusações jamais completamente provadas,
sua fama de ladrão, estuprador e assassino. Por crime de morte respondera a júri
e fora absolvido mais por falta de coragem dos jurados do que por falta de
provas. Diziam-no autor de dois outros assassinatos, sem falar na mulher
esfaqueada na Ladeira de São Miguel, em
pleno meio-dia, pois essa escapara por um triz. O covil de Paranaguá,
freqüentavam-no apenas capadócios profissionais
de

baralhos marcados, gatunos, batedores de carteira, vigaristas, gente sem
nada mais a perder. Pois bem: até lá
chegava Vadinho com seu magro dinheiro e seu riso alegre, e talvez fosse ele um
dos poucos eleitos a poder gabar-se de haver ganho alguma vez nos dados viciados
de Paranaguá. Segundo constava, de quando em quando, o negro permitia a
um parceiro de sua afeição acertar
uma bolada.

Vieram também as alunas de dona Flor, quase todas. Alunas e ex-alunas, unânimes no desejo de consolar a estimada e
competente professora, tão boazinha,
coitada! De três em três meses, sucediam-se
as turmas nos cursos de culinária geral
(pela manhã) e de culinária baiana (pela
tarde), formavam-se em forno e fogão. Com diploma impresso e quadro de
formatura exposto em loja da Avenida Sete, desde uma turma antiga, à qual pertencera
dona Oscarlinda, enfermeira de categoria, funcionária do Hospital
Português, esbelta e esporreteada, doida por
um enredo. Exigira diploma e quadro, movimentara as colegas, fizera
uma agitação dos demônios,
recolhera contribuições, arranjara desenhista
de graça, pintara o sete, a enxerida. Assim pressionada, dona Flor concordou,
inclusive com o desenhista, um conhecido de dona Oscarlinda, não sem
proclamar no entanto a competência de seu
irmão Heitor que desenhara o cartaz com o nome da Escola, ainda na Ladeira
do Alvo , infelizmente residindo agora em Nazareth das Farinhas. De
qualquer maneira, sentira-se vaidosa ao ler, no diploma e no quadro de formatura,
em grossas letras tipográficas:

ESCOLA DE CULINÁRIA

SABOR E ARTE

E, logo abaixo, em caracteres floreados:

Diretora

Florípedes Paiva Guimarães

Vadinho, nos raros dias em que, acordando mais cedo, permanecia
em casa, rondava as alunas, envolvendo-se nas aulas de culinária,
perturbando-as. Reunidas em torno da professora,
álacres e graciosas, elas anotavam as receitas,
as quantidades exatas de camarão, de azeite de dendê, de coco ralado, uma pitada
de pimenta do reino, aprendiam como tratar o peixe, como preparar a carne,
como bater os ovos. Vadinho interrompia com uma piada sobre ovos, de duplo
sentido, riam-se as descaradas.

Umas descaradas, quase todas elas. Muita amizade e adulação com dona
Flor mas de olhos interessados no patife.
Lá estava ele com seu ar trêfego e
altivo, escornado numa cadeira ou estendido num degrau da porta da cozinha, a
la godaça, a medi-las de cima a baixo, demorando-se atrevido nas pernas,
nos joelhos, no caminho das coxas, na altura dos seios. Elas baixavam os olhos, o
não-sei-que-diga não baixava os dele.

Dona Flor preparava os pratos salgados e os bolos, tortas e doces,
nas aulas práticas. Vadinho emitia
conceitos, arrotava chalaças, comia os
quitutes, circulando em torno delas, puxando conversa com as mais bonitas,
arriscando a mão salafrária se alguma mais
árdega se aproximava.

Dona Flor ficava nervosa, agoniada, a ponto de errar as medidas da
manteiga derretida no manuê difícil, rogando
a Deus fosse Vadinho para a rue, para a malandragem, para a desgraça do
jogo, mas deixasse as alunas em paz.

Agora, no velório, cercavam dona Flor e a confortavam, mas uma delas,
a pequena Ieda, com sua cara de gata arisca, mal podia conter as lágrimas e
não desviava os olhos da face do morto.
Dona Flor logo percebeu o exagero do sentimento, sentiu um baque no
peito. Teria se passado alguma coisa entre eles? Nunca notara nada de suspeito, mas
quem podia garantir não se encontrassem os dois fora da escola, fossem terminar
num castelo qualquer? Vadinho, desde o caso com a sirigaita da Noêmia
aparentemente deixara de pastorear as alunas. Mas
era homem de muita manha, bem podia esperar a desbriada na esquina,
botar-lhe conversa, e que mulher resistia à lábia
de Vadinho? Dona Flor acompanhava o olhar de Ieda, descobria o
beicinho trêmulo da moça. Não lhe restava
dúvidas ah! Vadinho mais sem jeito…

 

De todos os desgostos que lhe dera o marido, nenhum comparável ao caso
com a donzela Noêmia, putinha de
família respeitável, e noiva, um horror! Mas
dona Flor não queria recordar aquela
tristeza antiga na noite da sentinela, quando pela derradeira vez, fitava a face de
Vadinho. Tudo aquilo passara, estava distante, a fulana casara, fora-se embora com
o noivo, um zinho com fumaças de jornalista, talento precoce pois tão
jovem e já tão corno, de nome Alberto.
Ao demais, com o casamento a pedante enfeara de vez, virara um bucho
sem medida.

Quando, naquela ocasião, tudo terminara bem quase por
milagre, Vadinho lhe dissera no calor do leito e
da reconciliação: “Mulher permanente
pra mim só mesmo tu sou capaz de suportar. O resto é tudo xixica para passar o
tempo.” Ali, no velório, cercada de tanta gente
e de tanta afeição, dona Flor não
deseja relembrar aquela esquecida história,
tão pouco vigiar gestos e olhares da
pequena Ieda com seu choro malcontido, seu segredo debulhado em lágrimas.
Com Vadinho morto nada mais importava, para que esclarecer, tirar a limpo, acusar
e lastimar-se? Ele morrera, tinha pago tudo e até com juros pois tão jovem se
finara. Dona Flor sentiu-se em paz com o marido, não tinha contas a acertar com ele.

Curvou a cabeça, deixou de controlar os movimentos da moça. Via apenas,
ao baixar os olhos, Vadinho tocando-lhe o corpo com a mão, no leito de
ferro, dizendo-lhe ao ouvido: “Tudo xixica
para passar o tempo, permanente só tu,
Flor, minha flor de manjericão, outra nenhuma” . Que diabo era xixica? quis
de repente saber dona Flor. Uma pena, nunca lhe havia perguntado, mas coisa boa
não seria. Sorriu. Tudo xixica, permanente só ela, Flor, flor de Vadinho em sua
mão desfolhada.

5

No outro dia, às dez da manhã, saiu
o enterro, com grande acompanhamento. Não havia bloco nem rancho
naquela manhã de segunda-feira de carnaval
capaz de comparar-se em importância e animação com o funeral de
Vadinho. Nem de longe.

Espie… pelo menos espie pela janela… disse dona Norma a
Zé Sampaio, desistindo de arrastá-lo
ao cemitério… espie e veja o que é
o enterro de um homem que sabia cultivar suas relações, não era um bicho do
mato como você… Era um capadócio,
um jogador, um viciado, sem eira nem beira, e, entretanto, veja.. . Quanta gente
e quanta gente boa… E isso num dia de carnaval… Você, seu Sampaio,
quando morrer não vai ter nem quem segure a alça do caixão.

Zé Sampaio não respondeu nem
olhou pela janela. Metido num pijama velho, na cama, com os jornais da
véspera, apenas gemeu um fraco gemido e
meteu o dedo grande na boca. Era um doente imaginário, tinha um medo
desatinado da morte, horror de visitas a hospitais,
de sentinelas e enterros, e naquele momento encontrava-se à beira do enfarte.
Assim vinha desde a véspera, desde que a
esposa lhe informara ter o coração de
Vadinho estourado de repente. Passara uma noite de cão a esperar a explosão das
coronárias, rolando na cama em suores frios,
a mão comprimindo o peito esquerdo.

Dona Norma, colocando sobre a cabeça de formosos cabelos
castanhos um xale negro, apropriado para a
ocasião, completou, impiedosa:

— Eu, se não tiver pelo menos quinhentas pessoas em meu enterro,
vou me considerar uma fracassada na vida. De quinhentas para cima…

Partindo desse princípio, Vadinho devia considerar-se plenamente
vitorioso e realizado. Pois meia Bahia viera a seu funeral e até o negro Paranaguá
Ventura abandonara seu soturno covil e ali estava, o terno branco brilhando de
espermacete, gravata negra e negro laço na
manga esquerda, rosas vermelhas na mão. Preparava-se para segurar uma alça
do caixão e, ao dar os pêsames a dona
Flor, resumiu o pensar de todos na mais breve e bela oração fúnebre de Vadinho:

— Era um porreta!

 


This is an excerpt from Jorge Amado’s Dona Flor e Seus Dois
Maridos
. The book was
published by Livraria Martins Editora, São Paulo, Brazil.
The illustation was done by Floriano Teixeira.

Next: Blacks in Brazil and Mexico
Exit mobile version