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UNPUBLISHED Republic

Social crisis? What crisis? The press is the one that creates the crisis.
By alarming the population it does a disservice to the nation. You are
the responsible for the crisis. The country is in order, the real value
of salaries will be maintained and the institutions and the people are
supporting the government totally.
By
Júlio César Monteiro Martins

No Ministério

CHEFE DE GABINETE

Senhor Ministro, a sua sogra, a Dona Neuza, está querendo falar
com o senhor.

MINISTRO

Coloque ela na linha.

CHEFE DE GABINETE

Ela está na sala de espera, Ministro.

MINISTRO

Então manda ela entrar. Tá esperando o quê?

CHEFE DE GABINETE

O senhor Nakamura, vice-presidente da Subaru, tem uma audiência
marcada com o senhor para as quinze horas.

MINISTRO

Diz pro japonês esperar lá fora. Manda a sogrinha entrar.

CHEFE DE GABINETE

Sim, senhor Ministro.

DONA NEUZA

Tonico, desculpe eu vir aqui sem avisar. Mas é que eu preciso
falar com você um assunto urgente.

MINISTRO

Diga lá, sogrinha.

DONA NEUZA

Hoje de manhã eu estive lá no Centro Espírita da
Irmã Cordeiro, em Taguatinga. Eu estava com uma intuição
forte, e resolvi me consultar. A Joselina, a chefe do terreiro, recebeu
para mim o espírito de um hindu. Acho que era um daqueles gurus,
um velho muito sábio.

MINISTRO

E daí?

DONA NEUZA

O hindu mandou uma mensagem especial para você. Ele até
citou o seu nome. Ele mandou dizer o seguinte, preste atenção:
“Corte o que tiver que ser cortado, mas antes afie bem a lâmina”.

MINISTRO

Sei, mas e daí? O que é que ele quis dizer com isso?

DONA NEUZA

Ora, Tonico. Está na cara, não é?

MINISTRO

Não estou pegando…

DONA NEUZA

O déficit, Tonico. Os salários… É pra cortar
mesmo.

MINISTRO

O quê? O déficit ou os salários?

DONA NEUZA

Tonico, não complique as coisas. Você sabe muito bem do
que eu estou falando.

MINISTRO

Sogrinha, déficit público e salário são
coisas diferentes. Tem que saber direitinho o que é que ele quer
que eu corte.

DONA NEUZA

Os dois. É pra cortar os dois…

MINISTRO

Tem certeza? Não é melhor a senhora marcar uma nova consulta
e perguntar direitinho o que é que ele quer que eu corte?

DONA NEUZA

Os dois, meu filho. Eu garanto… Você quer que eu marque para
a Joselina vir aqui amanhã?

MINISTRO

Não. Aqui não. A senhora volta lá e conversa mais
com ele. Diga que está muito hermético esse negócio.
Peça pra ele ser mais claro. Faça o seguinte: pergunte a
ele sobre a política fiscal do Governo. Vamos ver o que ele tem
pra dizer.

DONA NEUZA

Política fiscal?

MINISTRO

É, diga só isso. Pergunte a ele assim: “Como deve ser
executada a política fiscal do Governo?” Vamos ver se ele é
craque mesmo ou se é fajuto.

DONA NEUZA

Pode deixar… Tonico, você se lembra da Zezé?

MINISTRO

Qual Zezé? A Zezé lá do sítio?

DONA NEUZA

Não. A Zezé, filha de criação da tia Dolores.
Uma lourinha, magrinha, lembra?

MINISTRO

Sei, que o tio Chico chamava de “lagartixa”…

DONA NEUZA

Essa mesma. Pois é, a Zezé se casou com um rapaz muito
bom, um economista, que fez mestrado lá nos Estados Unidos. Ele
agora está morando aqui em Brasília, e passando grandes dificuldades,
pobrezinho. Não dão valor ao rapaz, sabe? Você não
arranjava uma coisinha melhor pra ele não? Veja bem, meu filho,
se você não puder, pra mim é a mesma coisa…

MINISTRO

Manda o rapaz aqui.

DONA NEUZA

O nome dele é Fúlvio. Família italiana…

MINISTRO

Tudo bem. Eu jogo ele lá pro Banco Central.

DONA NEUZA

Graças a Deus! Deus é muito bom, meu filho… Jesus seja
louvado!

MINISTRO

Que assim seja.

DONA NEUZA

Bom, meu querido, agora eu vou deixar você trabalhar em paz. Deus
vai ajudar você a brilhar no Ministério. E eu vou todo dia
lá na Irmã Cordeiro pedir uma ajudazinha pros espíritos,
não é? Eu também quero dar uma mãozinha…

MINISTRO

Tá bom, sogrinha. Torcida boa é isso aí. Então,
amanhã, não esquece, hein: política fiscal do Governo!

DONA NEUZA

Pode deixar, que eu vou anotar num papelzinho… E você já
sabe, né Tonico. Afia a faca e corta. Corta mesmo. Não tenha
pena, não… Uma beijoca aqui pra sogra coruja do grande Ministro
da Fazenda… Ah, hoje vai ter festança na casa da Zezé.
Deus é muito bom!

Na Convenção

MINISTRO

É preciso que os senhores percebam que os banqueiros internacionais
mudaram radicalmente a sua postura diante do Brasil. Eles já estão
conscientes de que o Brasil jamais poderá pagar os juros da dívida
externa, e já se conformaram. É uma situação
completamente diferente de seis meses atrás. Eles hoje apostam no
nosso desenvolvimento, e as exigências que o Brasil terá que
aceitar a curto prazo, e que incluem a monitoração da nossa
economia interna pelos bancos credores, o achatamento dos salários
e o aumento dos impostos, virão a beneficiar o país a longo
prazo…

CONVENCIONAL 1

Ministro, Vossa Excelência é um imbecil…

CONVENCIONAL 2

Vossa Excelência está transformando o país em sucata
e gerenciando a escravidão do nosso povo. Vossa Excelência
é um traidor.

SECRETÁRIO DO PARTIDO

O que é isto, senhores? Vamos respeitar o senhor Ministro…
Vamos seguir o nobre exemplo de Cícero, que dizia: “Eu não
concordo com uma só palavra do que dizes, mas daria a minha vida
para que tenhas o direito de dizê-las”.

CONVENCIONAL 3

Vossa Excelência devia tomar vergonha e dar um tiro na cabeça…

MINISTRO

Os senhores estão sendo passionais, deixando-se levar pela emoção
num assunto que é meramente técnico, e que vem sendo administrado
com a maior competência pela excelente equipe de economistas que
me assessora no…

CONVENCIONAL 1

Cala a boca, burro!

SECRETÁRIO DO PARTIDO

Com tumulto nós não vamos chegar a lugar nenhum.

MINISTRO

Isto não é diálogo, é uma provocação.

CONVENCIONAL 3

Provocação o quê, seu safado, seu irresponsável…

CONVENCIONAL 1

Vossa Excelência, das duas uma: ou é muito ingênuo,
ou está levando dinheiro para defender essas idéias inteiramente
idiotas.

CONVENCIONAL 2

É esse o homem que é o Ministro do nosso partido? Esse
indivíduo não tem condições nem para ser trocador
de ônibus. Ele vai nos levar à falência. O país
todo. Ele vai nos conduzir à miséria total. Seremos daqui
a pouco uma nação de escravos, de prostitutas e de ladrões.
Esse homem devia ser preso…

SECRETÁRIO DO PARTIDO

Os senhores não estão deixando o Ministro expor as suas
idéias. Não vamos nos esquecer de que ele foi indicado por
nós ao Presidente da República, após ter sido escolhido
numa convenção democrática. Agora nós temos
que prestigiá-lo Ele é sem dúvida um dos nossos mais
brilhantes correligionários… Lembremos, senhores: E pluribus
unum.

CONVENCIONAL 1

Ele devia ser ministro dos nossos inimigos.

SECRETÁRIO DO PARTIDO

O Brasil não costuma fazer inimigos, nobre colega.

CONVENCIONAL 2

Depois desse comentário, eu não sei quem é mais
idiota, se o senhor Ministro ou o senhor Secretário-Geral do Partido…

CONVENCIONAL 3

É isso mesmo! Vossa Excelência está entregando o
país aos interesses dos estrangeiros e nos transformando numa colônia
de mendigos. Vossa Excelência quer adotar uma política suicida
e nos levar junto para o abismo. Nós não o indicamos para
que o senhor nos liquidasse… Nossa proposta era outra.

MINISTRO

Os senhores me indicaram porque não tinham outra escolha. Se
não sou eu, quem poderia ser? O senhor? Aliás, eu não
temo o abismo porque estou certo de que o Brasil é maior que o abismo…

CONVENCIONAL 1

Pois Vossa Excelência está desautorizado pelo Partido.
Nós exigimos a vossa renúncia imediata.

SECRETÁRIO DO PARTIDO

Calma! Calma, senhores! Não se pode decidir as coisas desta maneira.

MINISTRO

Eu me pergunto: Será que os senhores estão dispostos a
abrir mão dos cargos que o Partido detém hoje no Ministério?
Os senhores vão renunciar aos privilégios do Executivo? Quem
os senhores vão colocar no meu lugar? Vão entregar o Ministério
de mão beijada aos outros partidos da Aliança? Se assim for,
eu lavo as minhas mãos…

CONVENCIONAL 1

Mas Ministro, a sua política é totalmente contrária
ao programa do nosso Partido. É o avesso do que nós pensamos…

MINISTRO

Sim, reconheço que há algumas discrepâncias… Mas,
senhores, vamos raciocinar: o nosso Partido, que hoje é o Governo,
não pode praticar o programa que ele pregava quando era oposição.
São duas coisas totalmente diferentes…

CONVENCIONAL 1

Isso é a coisa mais cínica, mais imoral e mais descarada
que eu já ouvi na minha vida. Eu tenho nojo de Vossa Excelência.
Nós queremos Vossa Excelência fora do Ministério. E
já!

SECRETÁRIO DO PARTIDO

Os ânimos aqui estão exaltados. Eu gostaria de propor um
intervalo nos nossos trabalhos, para tomar um cafezinho e colocar a cabeça
no lugar. Precisamos ter bom-senso. Homo homini lupus.

CONVENCIONAL 3

Antes do intervalo, este Ministro calhorda precisa renunciar ao cargo
diante da Convenção.

MINISTRO

Devo informá-los que muito me orgulho de contar com a total confiança
do senhor Presidente da República, que acredita nas diretrizes que
estamos imprimindo à política econômica do país.
Eu não poderia renunciar mesmo que quisesse, pois como os senhores
sabem, o meu cargo não pertence a mim, e nem mesmo ao Partido, mas
ao Presidente da República.

CONVENCIONAL 3

Esse Presidente, tá na cara que é um débil mental!

SECRETÁRIO DO PARTIDO

Senhores, assim não é possível! Assim não
vamos chegar a lugar nenhum. Não podemos cair na mixórdia
inconseqüente ou no reles desacato. Precisamos respeitar os poderes
constituídos…

CONVENCIONAL 3

Nós queremos que os senhores morram afogados.

CONVENCIONAL 2

E que os corpos de Vossas Excelências não voltem mais à
tona para não assombrar o país.

CONVENCIONAL 3

Vá pro inferno, senhor Ministro! E leve toda a sua equipe!

MINISTRO

Bem, eu gostaria de agradecer as palavras gentis dos senhores convencionais,
e dizer que eu espero contar com o vosso apoio para que possamos sair logo
desta crise perversa em que o Brasil está mergulhado. Nós
acreditamos em Deus, e Deus é brasileiro e está torcendo
por nós. Muito obrigado.

No saguão da Convenção

REPÓRTER 1

Ministro, por favor. Como é que o senhor encara as críticas
do seu Partido à política econômica do Governo?

MINISTRO

Que críticas?

REPÓRTER 1

O Partido parece que não está de acordo com as diretrizes
tomadas junto aos credores externos do Brasil…

MINISTRO

Quem disse isto?

REPÓRTER 1

Todo mundo sabe, Ministro.

MINISTRO

Não é bem assim. Eu sou um Ministro do Partido, e é
claro que o Partido me apóia. O que ocorre é que a função
dos convencionais é apresentar sugestões de natureza política
que venham a contribuir para as nossas negociações.

REPÓRTER 1

Mas alguns convencionais pediram a sua renúncia imediata.

MINISTRO

Sem comentários.

REPÓRTER 1

O senhor pensa em renunciar, Ministro?

MINISTRO

É sempre assim. Vocês jornalistas têm uns truques
engraçados. Já reparei que vocês sempre põem
uma repórter bonitinha, como esta moça aqui, para fazer as
provocações. Eu não caio nessa. Vocês precisam
ser mais responsáveis.

REPÓRTER 2

Sem provocação, Ministro. Nós precisamos fazer
o nosso trabalho… Muita gente está achando que a sua política
é suicida, e que pode levar o país à miséria
absoluta. O que o senhor tem a dizer sobre isto?

MINISTRO

Quem está achando isso? É preciso citar os nomes. Vamos
agir com responsabilidade, não é? Quem afirmou uma sandice
dessas?

REPÓRTER 2

Os convencionais do seu próprio partido, Ministro

MINISTRO

Os senhores ouviram o galo cantar e não sabem aonde. A política
do Ministério é a política que é ditada pelo
Presidente da República. Eu sou um Ministro do Presidente.

REPÓRTER 1

Mas o senhor acabou de dizer que era Ministro do Partido…

MINISTRO

Eu sou Ministro do Partido e do Presidente. Satisfeita agora?

REPÓRTER 2

Ministro, não há comida nos supermercados, e quando aparece
é por um preço que o povo não pode comprar. O senhor
acha que isso pode agravar a crise social?

MINISTRO

Crise social? Que crise? Quem cria a crise é a imprensa, que
ao alarmar o povo presta um desserviço à nação.
Vocês são os responsáveis pela crise. O país
está em ordem, o valor real dos salários será mantido,
e as instituições e o povo estão apoiando o Governo
integralmente.

REPÓRTER 1

Mas então como o senhor explica que toda vez que aparece um carro
oficial, o povo vaia, apedreja e incendeia?

MINISTRO

Não disse que era provocação? O que existe é
a ação de baderneiros e de grupos subversivos, malfeitores
organizados pelos extremistas que só querem desestabilizar a ordem
e desgraçar o nosso povo. São os inimigos da Democracia.
Mas eles todos serão punidos exemplarmente.

REPÓRTER 2

E a fome, Ministro? E a recessão? E o desemprego?

MINISTRO

Vocês estão sendo falaciosos. A fantasia cria a realidade.
Acreditem na fome, e ela virá. Acreditem na prosperidade, e ela
virá. Eu, como sou otimista, ou melhor, realista, acredito na prosperidade
do nosso povo. Somos a oitava economia do mundo. O Brasil tem riquezas
infinitas. Como se pode acreditar em fome e desemprego neste país?
Só um irresponsável pensaria uma coisa dessas. O Brasil é
maior que o pessimismo de alguns e não se deixa convencer pelas
lamúrias das cassandras da oposição. Nós estamos
no caminho certo. Vamos chegar lá. Há um pote de ouro do
outro lado do arco- íris. Muito obrigado, senhores. Com licença.

No gabinete do Presidente

MINISTRO

Bom dia, Presidente.

PRESIDENTE

Bom dia, Tonico. Senta aí. Como está a Dona Terezinha?

MINISTRO

Vai muito bem, obrigado, Presidente. E a sua esposa, já está
recuperada?

PRESIDENTE

Já… Aquilo foi só um susto… Foi uma gripe forte, que
apresenta alguns sintomas de pneumonia. Está pegando em todo mundo,
essa gripe. Dizem até que já batizaram a danada com o meu
nome…

MINISTRO

É, eu ouvi contar… É a popularidade, Presidente…

PRESIDENTE

Que nada, isso é gozação. O pessoal é muito
gozador… Mas fora de brincadeira, essa gripe não é fácil.
Lá em casa pegou em todo mundo. Até a minha netinha, que
aliás é coleguinha de sua filha, da caçulinha, na
escola, ficou arriada. E o pior é que a menina não sossega.
É um azougue! Não fica de cama de jeito nenhum. Agora então
com esse disco da Xuxa, que ela ganhou da minha sobrinha, é um tal
de dançar rock o dia inteiro. Tem uma música lá que
diz que a “She-Ha namorava o Esqueleto no quintal”, que a menina fica louca.
Tem que parar todo mundo para ver ela dançar. Já falei que
qualquer hora a gente monta uma discoteca lá no Palácio.
E só o que falta…

MINISTRO

Ela é uma gracinha. A minha filha gosta muito dela … Bem, o
senhor me chamou aqui, e eu imagino que seja por causa do problema da política
fiscal do Governo. Eu trouxe um anteprojeto…

PRESIDENTE

Muito bem, muito bem. Mas quanto a isto eu confio cem por cento na capacidade
de sua equipe. Vamos colocar a casa em ordem, não é? Deus
há de nos ajudar. Mas não foi por isso que eu o chamei aqui.

MINISTRO

Em que posso servi-lo, Presidente?

PRESIDENTE

Eu estou muito bem impressionado com a maneira como vocês lá
na Fazenda vem conduzindo as negociações com os credores
externos. Os jornais, principalmente do exterior, têm elogiado muito
as suas gestões. É por aí mesmo, Tonico. É
fé em Deus e pé na tábua. Bom, eu mandei confeccionar
estas abotoaduras de ouro com as minhas iniciais gravadas, e gostaria de
presenteá-lo. É uma lembrança singela, mas muito sincera,
que eu estou oferecendo aos meus colaboradores mais leais e a algumas autoridades
civis e militares.

MINISTRO

Que beleza, senhor Presidente. São muito bonitas. Eu fico muito
honrado em recebê-las.

PRESIDENTE

Sabe, Tonico, tem um ditado lá na minha terra que diz que “macaco
gordo não pula em galho seco”. Eu tenho procurado pautar o meu Governo
dentro desta máxima da sabedoria popular. Vox populi, vox Dei,
não é mesmo? A prudência é uma grande virtude,
Tonico. E a coragem, aliada à prudência, é a maior
de todas as virtudes.

MINISTRO

É uma grande verdade, Presidente.

PRESIDENTE

É preciso zelar diuturnamente pela liturgia do cargo e pelos
interesses maiores da nação. E você sabe, Tonico, seu
pai era meu compadre, e você me conhece muito bem… Eu sou um idealista.
E tenho muita fé em Deus.

MINISTRO

Deus está ao seu lado, Presidente.

PRESIDENTE

Eu sinto isso, Tonico. Eu sinto a presença de Nosso Senhor Jesus
Cristo dia e noite ao meu lado, e rezo muito para que o Divino Espírito
Santo ilumine as minhas decisões, que às vezes são
duras, enérgicas, mas têm que ser tomadas, doam a quem doer!

MINISTRO

Tem toda razão, Presidente.

PRESIDENTE

O poder é muito solitário, Tonico. Na minha terra se diz
que “pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

MINISTRO

Muito sábio…

PRESIDENTE

E muito verdadeiro também. A gente só sente quando arde
nos olhos da gente. E aqui, nesta cadeira, as pressões são
terríveis… Você deve sentir o mesmo lá no Ministério…

MINISTRO

E como sinto, Presidente!

PRESIDENTE

Pois é… O seu cachorro é bassê?

MINISTRO

Como? Ah, não… Nos não temos cachorro no momento, Presidente.

PRESIDENTE

Mas que pena! A minha netinha ganhou uma cadelinha bassê, aquela
raça compridinha, você sabe… Bom, já está
na época de cruzar, e ela me pediu para arranjar um namorado pra
Xuxa, que é o nome que ela deu pra bichinha. Se você souber
de algum bassê desimpedido, manda avisar lá no Palácio…

MINISTRO

Claro. Sem dúvida… Eu tenho uma cunhada, a Lurdes, que é
casada com o irmão do Senador Ferreirinha, que é louca por
cachorros. Vou falar com ela hoje mesmo.

PRESIDENTE

E o Ferreirinha, como está? Há tempos eu não o
vejo. Cheguei a pensar nele para o Ministério da Irrigação,
mas as pressões do nosso Partido… O Ferreirinha é muito
amigo do meu sogro. Eu soube que ele teve um ameaço de infarto há
uns dois meses.

MINISTRO

Ele fez os exames no Hospital das Clínicas, mas já está
tudo sob controle. Zero quilômetro. A filha dele, a Marisa, vai se
casar no mês que vem com o filho do Granatto.

PRESIDENTE

Qual Granatto? Aquele do Citibank? Ele andou envolvido num escândalo
financeiro aí, não foi? Na Previdência ou na Caixa
Econômica, já não me recordo…

MINISTRO

É, acusam ele de um rombo, mas não conseguiram provar
nada. Esse pessoal é fogo…

PRESIDENTE

Tem muita inveja, não é? “Olho grande”, como se diz. Mas
eu vou mandar um telegrama para a filha do Ferreirinha. Casamento hoje
em dia é uma aventura…

MINISTRO

É verdade. “Casar não é a casaca”, como diz a minha
mãe.

PRESIDENTE

Muito boa essa! Eu poderia até acrescentar que “ser Presidente
não é a casaca”. É como dizia o Machado, não
é? “Ao vencedor, as batatas”.

MINISTRO

Boa lembrança, Presidente. Já reparei que o senhor gosta
muito de citar Machado de Assis. Eu também sou fã do Machado.
Li a obra completa dele na minha adolescência.

PRESIDENTE

A literatura é o mel da vida, meu caro Tonico. E o pior é
que estas obrigações da liturgia do poder são o fel
da existência.

MINISTRO

É uma belíssima imagem, Presidente.

PRESIDENTE

Bem, meu caro Ministro. Eu não quero atrapalhar os seus afazeres
lá na Fazenda. Lembranças à sua senhora e não
se esqueça: Deus só ajuda a quem tem fé. Vamos acreditar!

MINISTRO

Eu guardo muita fé e rezo muito para Santa Edwiges para acertar
com os nossos credores externos.

PRESIDENTE

Deus é brasileiro! Ele vai iluminar o seu caminho…

MINISTRO

Muito obrigado pelas abotoaduras, meu Presidente. Já vou usá-las
hoje mesmo. Lembranças à netinha e à Xuxa dela.

 

The original title of this short story is “República”.

Júlio César Monteiro Martins, the author, was born in Niterói, in the Greater Rio, in 1955. He
has published several short-story books:
Torpalium, Sabe Quem Dançou?,
A Oeste de Nada, As Forças
Desarmadas, and Muamba. Monteiro Martins is also the author of three novels:
Artérias e Becos,
Bárbara, O Espaço
Imaginário and a volume of essays: O Livro das
Diretas. He is one of the founders of the Brazilian Green Party and from
1992 to 1994 worked as a lawyer for the Brazilian Center in Defense of Children’s Rights. He taught literary
creation at the Goddard College in the US and is now a professor in Italy, teaching literary creation and Brazilian
literature in the University of Pisa. He also teaches Literary Creation in Narration in Florence, Lucca, and Pistoia. Martins is the founder of Sagarana School
(http://www.sagarana.net). You can get in touch with him writing to
jmontei@tin.it

 

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