Broken Dream

Broken Dream

Guilherme looked in the mirror and saw an indecent belly that
insisted on showing up under his coat. He could not see the athletic body he used to have,
that swimmer body he had developed through years of training at the club’s swimming pool.
By Two
by

Adelaide Bouchardet Davis
Artificial Fruit
His hands strolled through her body, exploring its roads, getting to
know each place, and lighting the world of unconfessed desires that she had hidden from
herself all these years. Leonor felt like floating and she screamed when she reached the
orgasm.

“Eu queria dizer a ela que se apenas algumas coisas
estivessem erradas com o meu corpo estaria bem, eu preferiria ter qualquer coisa errada
com o meu corpo do que alguma coisa errada com minha cabeça…”

The Bell Jar by Sylvia Plath

O telefone tocava insistente mas Leonor não se moveu na cadeira—brincava com as
frutas artificiais no centro da mesa. O silêncio só era cortado pelo som histérico que
vinha do aparelho. A vontade era de ficar ali para sempre, sentada, como se seu corpo
fizesse parte dos móveis da sala escura. O som estridente parou e ela continuou lá,
sozinha, quieta, com os cabelos amarrados em coque, nuns chinelos velhos e sem graça.

Finalmente largou as frutas, levantou devagar, arrastou aqueles chinelos velhos e sem
graça até à pia do banheiro. Pegou os comprimidos—uns vinte—e encheu a mão
com eles. Foi colocando os pequenos círculos brancos na boca e tomando água por cima.
Escovou os dentes com cuidado, soltou os cabelos, olhou uma última vez para o
espelho—percebeu que os olhos estavam muito inchados e a pele macilenta dava um tom
trágico àquele rosto sem graça como os chinelos velhos.

Foi para o quarto devagar, dobrou a colcha com cuidado e a colocou aos pés da cama,
arrumou os travesseiros, se assentou e tirou os chinelos velhos e sem graça. Passou a
mão pela testa e afastou alguns fios de cabelo que lhe incomodavam os olhos. Pegou o
livro de Garcia Márquez e se ajeitou com cuidado debaixo da coberta fina. A luz da
mesinha de cabeceira ajudou-a a passear pelo próprio quarto e ver o que sempre estivera
por lá. Um guarda-roupa escuro com espelho na porta—uma porta que não conseguia
fechar direito. Perto dele um cabide para bolsas e cintos e uma cadeira de vime. As
cortinas eram curtas, estampadas com flores descoradas e o tapete ocre de franjas não
tinha nada de especial. A penteadeira antiga, que fora de sua mãe, estava enfeitada com
vidros de perfume, um porta-jóias de porcelana e um anjinho azul de louça. O banco,
forrado em “gobelin”, completava a decoração—o pano estava velho e gasto
e já não se podia mais ver o desenho de uma cena rural francesa do século XV. Uma
sensação de decadência e desgosto insistia em competir com a frustração, o desânimo
e a dor incontida que já estavam lá há tantos anos. Um sono fininho veio aparecendo e a
cabeça parecia girar um pouco. O livro semi-aberto ficou sobre o peito, e o dedo
indicador marcava a página que estava sendo lida. Pensamentos desencontrados começaram a
se misturar nervosos, parecendo que cada um queria ser o principal. Leonor ouviu risos de
criança e uma claridade irreal deixou que ela passeasse pelo jardim da casa da família.

O pai, homem bonito ainda, nos seus quarenta e três anos, aparência um pouco vulgar
com seu bigode fino e cabelo glostorado, veio ver o bichinho que ela pegara na árvore;
abraçou-a pela cintura e ficou respirando ao seu ouvido, com o corpo bem encostado no
dela. Ela estava então com doze anos e não gostava de ser abraçada daquele jeito.
Sentia o corpo dele duro e quente e suas mãos grossas e pesadas passavam apressadas pelas
pernas dela. A mãe veio chegando e trazendo a bandeja com as limonadas e os biscoitos
fritos e cobertos de açúcar. Era uma mulher bonita mas tinha um ar triste, mesmo quando
vestia aquele avental xadrez com flores enfeitando os bolsos. Estava com uns trinta e
cinco anos, tinha os cabelos pretos e curtos. À sua chegada o pai se afastou nervoso de
Leonor e foi pegar um copo—o calor daqueles dias de novembro era insuportável! A
mãe se assentou na cadeira de balanço com um copo na mão; distraída deu um impulso com
o pé fazendo a cadeira se movimentar. Tudo tinha um ar de preguiça. Leonor pegou um
biscoito e o último copo que suava, e se assentou nas escadas da varanda. O pai começou
a conversar sobre a viagem que Dona Zilá faria para visitar uns parentes. Leonor
perguntou se poderia ir também e a mãe, com um sorriso sem sal, disse que ela precisava
ficar por causa das aulas. O pai disse que a passagem já estava comprada e que o trem
sairia às sete e meia naquela mesma noite.

Foram levar Dona Zilá à estação e elas se despediram com um abraço; a mãe pediu
que a menina cuidasse do pai. O homem beijou o rosto da mulher sem carinho algum—um
beijo de pura obrigação.

Leonor e o pai voltaram para casa em silêncio. Ele dirigia o carro velho com a mão
esquerda, enquanto a direita, pesada e grossa, acariciava as pernas da menina que se
encolhia toda sentindo raiva daquele homem mau. Quando o carro parou em frente ao portão
ela saiu apressada, batendo a porta com força. Entrou em casa nervosa e foi para o
banheiro; lavou o rosto com a água fria e olhou para o espelho que refletia medo. Foi
para o quarto, depois de se acalmar um pouco e vestiu sua camisola de minúsculas flores
vermelhas. Sem vontade alguma, foi dizer boa noite ao pai. Ele estava lendo o jornal e
vendo televisão. Quando ela chegou, o homem fechou o jornal e pediu-lhe que ficasse um
pouco na sala com ele; ela disse que estava com sono e ele gritou que ela se assentasse no
sofá, ao seu lado. Ela obedeceu calada e ele ficou passando a mão em seus cabelos
compridos; ela fez um movimento tentando evitar a carícia. Ele segurou os braços da
menina com força e disse em tom de ameaça “fique quietinha que eu não vou te
machucar!”. Depois começou a acariciar seu pescoço e abriu os botões da camisola.
Não diziam nada; ele olhava para a televisão enquanto ela, acuada, deixava que as
lágrimas lavassem sua vergonha. Estava paralisada de medo. Aquela mão grossa e imensa
passeava vagarosa pelo seu corpo miúdo e ela sentiu o coração parar quando os dedos
dele se enfiaram dentro de sua calcinha machucando seu corpo e sua alma. Em pânico ela se
levantou, sem permissão, e correu para o quarto trancando a porta. Ele, excitado,
respirando forte, e completamente fora de si ficou lá no sofá e não fez nenhum gesto
para detê-la. Leonor se escondeu sob as cobertas, rezando para que aquele homem não
fosse para o quarto dela. Tudo era agora um silêncio só; talvez Deus tivesse dormido
também, e se esquecera que a mãe não estava lá para tomar conta dela.

Dona Zilá ficou fora por cinco dias. Quando chegou em casa tudo estava em perfeita
ordem. Nunca ficara sabendo o que tinha acontecido na sua ausência, nunca ficara sabendo
o que acontecia na sua presença.

Aquela mulher triste morreu quando a filha estava com trinta e sete anos. Leonor
continuou a morar com o pai na mesma casa—aquela casa sem graça que nunca tivera
festa de aniversário, que nunca tivera festa de debutante, que nunca tivera festa
nenhuma. Freqüentara umas poucas festinhas em casas de conhecidos, horas dançantes num
clube do bairro, e algumas festas juninas. Jamais convidou os raros amigos para irem à
sua casa—a mãe estava sempre triste e o pai tinha cara fechada. Quando Dona Zilá
morreu, Leonor já havia se formado em Psicologia e o Senhor Sinval já estava aposentado
e mais carrancudo do que nunca, bastante doente e calado. A moça trabalhava numa empresa
grande, na área de seleção de pessoal; era retraída, tímida, de pouca conversa.

Leonor nunca fora bonita ou atraente. Era uma pessoa comum, de rosto comum, que se
perdia na multidão. Na faculdade, tivera alguns colegas com quem estudava em alguns
finais de semana. Não deixou saudades quando o curso acabou; não ficou ligada a ninguém
em especial. Tivera alguns flertes mas era insegura; o medo de se aproximar dos homens
nunca deixara que eles fossem parte de sua vida. Gostava de ler; tinha uma atração
especial pela simplicidade e força de Adélia Prado em Cacos Para um Vitral”—lera
aquele livro umas quatro vezes. Conhecia toda a obra de Fernando Sabino e tinha seu
autógrafo na página de rosto do Encontro Marcado; sublinhara em preto uma frase
inesquecível—”matar não é tão grave como impedir que alguém nasça; tirar
sua única oportunidade de ser”. Dos estrangeiros seu preferido era Garcia Márquez;
chegava a ter sonhos eróticos com ele e aí conversava em espanhol com o autor dos Cem
Anos de Solidão. Tinha em sua mesa de cabeceira um livro de poesias de Cecília
Meireles.

O remédio lhe dava agora uma sensação de embriaguez. A cabeça rodava tonta, e ela
mergulhava em vertigem—será que vai demorar?! Começou a escutar o
“Bolero” de Ravel—tan, tan, tan, tan, tan, tan, ran, tan, ran, tan, tan …
Momentos de sua vida iam e vinham… Alberto caminhava pela avenida, no final da tarde.
Ela, como sempre, andava apressada pois não queria pegar a fila imensa do ônibus naquele
horário. Sem prestar atenção, esbarrou no braço dele e a sombrinha lhe caiu da mão
ocupada com livros e embrulhos. Alberto se abaixou, pegou a sombrinha e entregou a ela.
Sentiu-se nua quando ele a olhou pedindo desculpas. A voz de Leonor saiu como um suspiro
quando disse sem graça “por favor, a culpa foi minha!”. Ele insistiu em
ajudá-la a carregar as coisas até o ponto do ônibus; ela não soube como recusar.
Quando o ônibus estava chegando ele lhe deu um cartão e pediu que ela telefonasse quando
tivesse um tempinho. Sentindo as pernas bambas, entrou no coletivo e não o viu mais
porque foi envolvida por corpos suados.

Chegou em casa cansada mas em completo estado de graça com o acontecido; ao entrar foi
logo sentindo o desconforto de ver o pai assistindo televisão—ele estava tão
acabado! Perguntou-lhe se queria comer e ele respondeu com um “uhm!” que não
significava muito. Não se importou com o velho. Foi para o quarto, deixou os livros sobre
a cama e colocou a sombrinha no cabide de bolsas e cintos. A lembrança do sorriso de
Alberto deu-lhe uma sensação gostosa—queria ligar para ele naquela hora mas se
conteve. Trocou de roupa e voltou à sala de jantar. O pai continuava lá, na mesma
posição—o pijama lhe dava um ar de descaso.

O derrame lhe entortara a boca, e o bigode que o fazia parecer vulgar estava branco e
caído. Depois de lhe servir o jantar, lavou as vasilhas e voltou para a sala onde ficou
ouvindo as notícias pela televisão, enquanto tricotava uma suéter—esperava pela
novela das oito e meia. O pai fazia um barulho incômodo, respirando rouco enquanto
dormia; ela olhou para ele com desprezo. A mão dele continuava grossa e imensa e ainda
acariciava o pensamento dela fazendo reviver um passado secreto que ela tentava esquecer.
Teve ódio dele. Enxugou com força uma lágrima no canto do olho—pensou na mãe
sempre triste, pensou em si mesma. Olhou novamente para o pai e desejou que ele morresse
ali. Não queria sentir o cheiro daquele homem asqueroso. Foi para o quarto e o deixou lá
sozinho. Antes que o sono chegasse pensou no encontro do final da tarde.

Ligou para Alberto no dia seguinte. Era sábado e ele atendeu o telefone com voz de
sono. Leonor sentiu que incomodava mas ele disse que ficara feliz que ela tivesse ligado.
Convidou-a para sair; talvez pudessem ir tomar alguma coisa à noite. Ela ficou
impressionada com aquele convite e aceitou antes que fosse retirado. Alberto foi buscá-la
em casa; foram comer uma pizza na “Cantina do Alfredo”—ele tomou cerveja
preta e ela pediu uma limonada. Conversaram sobre livros que leram e viagens que sonhavam
fazer. Por volta das onze horas, Alberto a deixou em casa e ao se despedir disse que
queria vê-la novamente. Ela entrou em casa excitada e foi para o quarto sem mesmo ver se
o pai estava na sala. Tirou a roupa e tomou um banho frio e rápido. Quando penteava os
cabelos percebeu como eles estavam ralos; e os dentes, pareciam tão tortos e escuros!
Queria ser bonita, ou pelo menos, ver alguma coisa bonita naquele rosto
irregular—não havia nada de interessante ali. Abriu o paletó do pijama e olhou os
seios; acariciou-os e sentiu calor por dentro—lembrou-se de mãos grandes e grossas
mas afastou aquele pensamento. Tirou a roupa toda, ficou nua e se olhou no espelho da
porta do guarda-roupa. Pensou em Alberto e começou a se tocar lentamente—os seios, o
ventre, os pêlos. Uma sensação enorme de prazer tomou conta dela. Não durou muito
porque naquele momento suas mãos eram grossas e grandes e ela sentiu nojo. Imediatamente
se cobriu e foi para a cama, escondendo-se sob as cobertas.

Quis falar com Alberto no dia seguinte mas decidiu esperar até que ele lhe
telefonasse—não queria ser oferecida demais. Esperou durante a semana toda … e
outra, e outra, e outra… Não teve notícias dele—estaria viajando? Sentia-se
frustrada porque não tivera o gosto de um beijo dele, como não tivera o gosto do de
Garcia Márquez. Aquele ano acabou assim, sem notícias de Alberto, sem beiaw6kx de Garcia
Márquez, só a presença constante do pai.

Senhor Sinval morreu em janeiro, depois das festas. Não veio muita gente para o
funeral. O cemitério parecia vazio; de vez em quando alguns colegas do trabalho chegavam
para os pêsames. Leonor não se sentiu triste—nem pela morte do pai, nem pelo
número pequeno de pessoas ali presentes. O tempo passava lento e o calor era sufocante;
lembrou-se da limonada que a mãe fazia e do abraço do pai—quis sair dali e não
voltar mais. Uma mulher ajeitou o véu que cobria aquele corpo que não faria falta a
ninguém. Caiu uma chuva forte e o calor ficou pior. O cheiro do lugar incomodava Leonor;
o morto com as mãos postas esperava por um afago que não veio. O cortejo fúnebre saiu
por volta das cinco e trinta da tarde. Não demorou a chegar ao túmulo—os que ainda
estavam ali queriam se ver livres daquele ato de fé cristã. Leonor jogou uma flor
amarela sobre o caixão antes que colocassem a placa de cimento sobre ele; os homens
completaram a cerimônia jogando a terra até que tudo estivesse consumado—naquele
momento ela sentiu inveja deles. Enterraram o homem, seus pecados e seus vícios.

O enterro do pai ficara para trás. Já haviam se passado oito meses e a vida moldara
uma nova rotina para ela. Leonor acordou naquela quinta-feira cedo e viu que estava
chovendo—havia no ar úmido uma promessa de dia escuro e feio. Levantou-se ainda com
preguiça e foi para a cozinha. Preparou um café e gostou de sentir o cheiro da fumaça
que vinha do coador. Uma sensação de completa liberdade tomou conta dela. Vivia sozinha
agora e não precisava mais olhar para aquele velho que era o dono do seu passado, da sua
vergonha, da sua revolta. Não queria pensar mais nele. Vestiu um vestido qualquer,
calçou a bota com descaso, arrumou os cabelos em coque, pegou a bolsa e a
sombrinha—pensou em Alberto. Trabalhou pouco naquele dia; a cabeça estava cheia de
lembranças de Alberto e a toda hora sentia o cheiro de colônia Old Spice. Saiu depois do
expediente e foi fazer umas compras—meias finas, talco e sabonete, biscoitos
salgadinhos, azeitonas verdes e um queijo. Perto do caixa viu umas frutas
artificiais—comprou algumas. Resolveu fazer uma extravagância e comprou também uma
garrafa de vinho tinto seco. Saiu da loja e, por sorte, conseguiu tomar um táxi que
acabava de ficar livre; deu o endereço ao chofer.

O homem na direção era simpático, jovem ainda, e muito falante. Comentaram sobre o
trânsito, sobre o povo na rua, sobre o tempo. Ele a olhava pelo espelho e ela se lembrou
mais uma vez de Alberto. Estava frio e o motorista reclamou que trabalhara o dia todo, que
estava cansado, e que daria tudo por um bom banho e um lugar quentinho. Sua voz era
atraente, seus braços fortes, e ele continuava a olhá-la pelo espelho. Quando estavam
quase chegando, ela perguntou “você não quer tomar um vinho comigo?” Ele
aceitou com naturalidade, como se esperasse pelo convite; estacionou o carro em frente ao
portão e pegou uma bolsa pequena no porta-luvas. Entraram na casa antiga e Leonor acendeu
a luz da sala perguntando-lhe se queria tomar um banho enquanto ela preparava o vinho e
umas coisas para eles comerem. Ele aceitou o banho e ela lhe mostrou o caminho,
entregando-lhe uma toalha limpa. Pouco depois, o barulho da água que caía do chuveiro a
fez pensar nos braços fortes. Quando o homem voltou as coisas já estavam arranjadas e as
frutas artificiais enfeitavam a mesa coberta por uma toalha nova. Ele estava de camiseta
branca e a calça “jeans” justa mostrava suas formas. Leonor saiu da sala,
dizendo-lhe que se servisse. Correu para o chuveiro, tomou um banho quente e depois foi
para o quarto; tirou da gaveta um conjunto de peças íntimas cor de pêssego. Pensou em
colocar um vestido leve mas se decidiu por um robe confortável; na falta de um par de
chinelos novos, calçou aqueles velhos e sem graça.

Voltou à sala e encontrou o convidado olhando seus velhos long plays. Ele fez
um comentário qualquer a respeito e entregou a ela um copo de vinho. Fizeram um brinde à
nova amizade e ele comentou que o chuveiro estava com problema, não fechava
direito—se ofereceu para fazer o conserto qualquer outro dia. Disse que se chamava
Gabriel e perguntou qual era o nome dela. Ela riu da coincidência e falou que gostava de
Gabriel Garcia Márquez. Ele perguntou surpreso “quem é este senhor?!” e ela
achou engraçado alguém chamar Garcia Márquez de senhor; respondeu apenas que era um
amigo de longa data. Disse que se chamava Leonor e colocou um disco para tocar. A música
suave trazia uma sensação boa; sons de violinos e piano se misturavam de forma
mágica—… tender is the night … O ambiente se tornou mais agradável,
menos tenso. Ele a convidou para dançar e ela aceitou. Eles se abraçaram e ela não se
lembrou de Alberto. O corpo de Gabriel a excitava—era musculoso e tinha cheiro bom.
Ele a beijou com força e ela não recusou; outros beiaw6kx vieram quentes e molhados.
Gabriel a arrastava ao ritmo lento da música; suas mãos acariciavam as costas de Leonor.
Ela pensou nos “cem anos de solidão”. O disco parou de tocar e o silêncio
tomou conta de tudo. Os dois ficaram muito próximos, um de frente para o outro. Leonor
sentia o cheiro suado e bom do parceiro. Ele abriu o robe dela tocando aquele corpo com
mãos grandes e cheias de desejo. O prazer tomou conta dela. A princípio o toque veio
como se descobrindo segredos—bem devagar, com cuidado; depois com força e de um
jeito bruto. Quando ele segurou e beijou seus seios, passando sobre eles a língua quente,
mordendo de leve cada parte deles, ela se entregou a uma vertigem sem fim. Leonor fechou
os olhos e deixou que aquele mundo de sensações se misturassem às carícias; o corpo
dele era forte e teso e ela sentiu como era bom tocar sem medo cada parte daquele homem
jovem e sensual que se oferecia a ela. Os corpos se misturavam no sofá. Ele estava sobre
ela enquanto o calor e o cheiro se faziam um. Gabriel a dominava com o corpo todo e cada
movimento trazia sensação de puro prazer. Ela não queria que aquele momento acabasse
nunca e ele parecia saber disso; não se apressou e a foi levando para uma viagem louca.
As mãos dele passeavam pelo corpo dela, percorrendo caminhos, conhecendo cada lugar e
acendendo o mundo de deseaw6kx inconfessados que ela escondera de si mesma por tantos anos.
Leonor se sentiu flutuar e gritou quando atingiu o orgasmo. Gabriel sentiu o prazer da
mulher que ele dominava e seu desejo se transformou em gozo pleno. Molhado de sexo e suor,
aos poucos ele foi relaxando o corpo tenso e, finalmente, se esticou ao lado dela
respirando cansado. Ficaram ali por um tempo—não disseram nada. Ele se levantou de
repente e vestiu o “jeans” e a camiseta; ela vestiu o robe e amarrou as faixas
na cintura. Continuavam sem dizer nada e aquele silêncio machucava. Leonor tomou um pouco
de vinho enquanto Gabriel calçava as meias. Num impulso ela perguntou quando ele
voltaria. O homem a olhou surpreso e disse “voltar? por quê? eu só queria me
divertir um pouco e achei que foi legal. Você também estava querendo isto. Você é uma
coroa gostosinha mas a gente pára por aqui. Eu tenho uma noiva e num `tô querendo me
estrepar. Minha noiva é quase uma menina e tem um pai danado de bravo. Aí, de vez em
quando eu gosto de ter um casinho com mulheres mais velhas e experientes”. Acabou de
amarrar o tênis, pegou a bolsa e se despediu sem afeto; saiu fechando a porta com
descuido.

Leonor, enrolada no robe, se assentou à mesa. As lágrimas não vieram. Pensou em
Alberto—será que ele também era assim? Sentiu-se velha, feia, sem graça. Pensou no
pai, nas mãos grandes e grossas—sentiu nojo. O telefone tocava insistente mas ela
não se moveu na cadeira—brincava com as frutas artificiais no centro da
mesa—não pensava em nada, não sentia nada. Ficou ali, deixando o tempo passar.
Finalmente largou as frutas, foi para o banheiro, tomou uns vinte comprimidos, escovou os
dentes, soltou os cabelos, olhou uma última vez para o espelho, foi para o quarto, tirou
os chinelos velhos e sem graça, se ajeitou com cuidado na cama, pegou o livro de Garcia
Márquez, olhou ao redor do quarto, fechou os olhos.

Não ouviu quando bateram à porta chamando por ela insistentemente. Um sono profundo
vinha chegando e a escuridão não deixava mais que ela passeasse pelo jardim da casa da
família.

Broken
Dream

Guilherme looked in the mirror and saw an indecent belly that
insisted on showing up under his coat. He could not see the athletic body he used to have,
that swimmer body he had developed through years of training at the club’s swimming pool.

“Famílias felizes são todas semelhantes; cada família infeliz
é infeliz do seu jeito.”

Anna Karenina by Leon Tolstoy

Todas as noites, depois do serviço, lá iam eles para o mesmo bar. Eram cinco
amigos—fiéis, constantes, presentes. Freqüentavam o Costelinha, um boteco
“fuleiro” mas com uma comida ótima. Como num ritual o grupo chegava, ia direto
para a mesa que tinha sempre o cartão RESERVADA. E os cinco se livravam dos paletós e
das gravatas que eram colocados nas costas das cadeiras e esquecidos durante o tempo em
que eles bebiam. Lá vinham as loiras geladíssimas acompanhadas de
tira-gosto—mandioquinha frita, carne de sol, ou costelinha de porco, a especialidade
da casa. Ninguém se atrevia a falar em colesterol, pressão alta e coisas do gênero
porque bar não é hospital e tudo isso é bobagem—o importante é se divertir.

Mesmo que para outros pudesse parecer filme repetido, para eles o “Costela”
era uma coisa sempre nova, era uma coisa muito especial, quase mágica. Os cinco
construíram um pequeno mundo só deles, dentro do mundão em que viviam, para se
refugiarem nele quando fosse preciso; um mundo admirável para onde só levavam seus
sonhos, suas fantasias, suas vontades etéreas, sua alegria, e uma quantidade enorme de
conversa fiada. Naquele mundo era proibido falar sério, discutir coisas que pudessem
interferir na harmonia do astral.

O corre-corre no bar não parava nunca e Tião, o garçom, estava sempre atento para
não faltar nada à mesa de clientes tão “gente fina”. De vez em quando um
deles aparecia com algum conhecido; mas, existia um lema naquela
fraternidade—”não aceitamos novos sócios”. Aquilo não era amizade
nascida em mesa de bar—eles se tornaram amigos primeiro e depois foram para o bar.
Tião trazia os pedidos e havia sempre um jeito de “trocar umas idéias” com os
fregueses.

O tempo passava, os cabelos brancos apareciam, os mais escuros caíam, e os cinco
amigos fiéis continuavam presentes e constantes, assinando o ponto no Costelinha. Os
assuntos variavam e sempre aparecia alguma coisa nova para se comentar—mudanças na
direção da companhia, um colega novo, uma decisão do governo, um problema com o chefe,
resultados de jogos de futebol e por aí afora. Outras pessoas da empresa passavam por
ali, cumprimentavam, tomavam um copo de cerveja e iam embora. Mas os cinco ficavam lá,
até o horário habitual.

Não se preocupavam com as mulheres. Elas eram compreensivas e ficavam em casa cuidando
dos filhos. Estava claro para os amigos que elas achavam normal os maridos saírem depois
do serviço para aliviar a tensão de um dia de trabalho—mesmo que, algumas vezes,
fossem mais dias do que trabalho. E eles nunca enjoavam da mesma cerveja, do mesmo
tira-gosto, das mesmas caras, da mesma mesmice.

Nunca pararam para pensar que a mulher deles era para ser amada. Pensavam nelas sim,
quando alguém perguntava “e a Suzana, como vai?!” e o marido da Suzana dizia
“vai bem, obrigado!” E as Suzanas eram esquecidas, até que se precisasse delas.
Lá pelas tantas, hora de ir embora, elas se tornavam uma boa desculpa para se poder
levantar e sair—”a Suzana vai ficar uma fera que eu `tô chegando tarde
hoje!” E os outros concordavam e diziam que a Marta, a Aurora, a Sônia, a Júlia
também iriam ficar de mau humor com a demora. Inventavam esta história para eles mesmos
e isto fazia parte do ritual também.

Quando chegavam em casa, a realidade estava lá—crianças, mulher sem nenhum
prazer, comida fria esperando sobre o fogão. E era por isto que eles nunca iam para casa
logo depois do serviço—esta cena não era a preferida de nenhum deles. Um boa noite
meio sem graça, um desgosto de ver aquele mundo sem sabor e sem cheiro—só cheiro de
casa, de comida, de banho de criança, e tudo com jeito de deus-me-livre.

Guilherme andava muito cansado daquela chatíssima vida de casado que começara uns
sete anos atrás. Suzana era muito boa mas tinha se acomodado àquele mundo sem graça,
bobo, que incomodava tanto o marido. Na hora que ele chegava do bar, as crianças já
estavam na cama; colocava a pasta e as chaves sobre a cadeira ao lado do aparador, passava
pela cozinha para tomar um leite e dizia à mulher que já ia se deitar. Ela vinha para o
quarto, puxava uma conversa, falava sobre o dia, sobre as crianças, sobre a mãe dela, ou
a dele, sobre um novo filme que tinha sido lançado e que parecia muito bom, ou um
concerto de piano que seria apresentado naquele mês. O comentário dele era sempre um
banho de água fria no assanhamento dela—”filme é coisa de boboca!” ou
“não sei como você agüenta este negócio de concerto!” Depois caía na cama
pesado, cheirando a cigarro e cerveja, sem assunto, sem casos para contar; um banho à
noite era opcional, dependendo da canseira. A mulher olhava para ele desgostosa,
desesperançada. Com o cansaço da alma passando para as pernas, ela caminhava devagar
para o banheiro. Quando voltava para o quarto, já mais animada pelo banho, se perfumava e
arranjava os cabelos; ele nunca notava nada disso, nem mesmo se ela vestia uma camisola
nova. Quando ela se ajeitava ao seu lado, buscando carinho, querendo que o marido
percebesse que aquele corpo ainda estava vivo e tinha desejo, ele fechava os olhos e a
respiração pesada como que dizia “talvez numa próxima ocasião”. E ela
sentia, com frustração e raiva, o cheiro da cerveja e do cigarro, seus rivais de tantos
anos.

E assim iam levando a vida—manhãs e tardes que passavam, e os amigos esperando a
noite que vinha para levá-los ao Costelinha onde estava o prazer de se viver.

Um dia, Guilherme encontrou-se com velhos amigos de colégio durante o almoço no
Capitania, restaurante requintado, que ficava próximo ao escritório de um cliente com o
qual faria um negócio à tarde. Foi uma sensação boa estar com aquela gente; parecia
que o tempo voltava para trás. Lembrou-se de tantas coisas que sozinho nunca se lembrara.
E foram repassando tudo o que tinha acontecido nos tempos de escola. Um deles perguntou
pela Suzana e Guilherme contou que o casamento estava indo bem e que eles tinham três
filhos lindos. Quiseram saber mais; como ela estava? ainda continuava aquele
“mulherão” que saía arrasando por onde passava? E riam dizendo como ele dava
sorte com as mulheres. Sem perceber Guilherme começou a falar, cheio de entusiasmo, sobre
a mulher. Era como voltar no tempo, estar de novo no colégio, de uniforme e esperando as
meninas descerem a rampa para o recreio. Suzana se sobressaía com seus cabelos castanhos
e compridos, aquela pele tão bonita e com cor de pecado. Ele se perdia em seus
pensamentos quando se lembrava daquele sorriso de dentes tão branquinhos e uma boca que
dava vontade de morder.

Terminado o almoço, despediu-se dos ex-colegas e foi andando para o escritório do
cliente. E pelo caminho andado ficou pensando “onde está aquela mulher com quem eu
me casei? parece que foram tantos anos!” O coração ficou apertado, como se
estivesse perdendo aquela pessoa especial que ele conhecia há tanto tempo. Sentiu uma
enorme pena de si mesmo, pena daquela menina linda, pena de seu casamento tão falido. Deu
vontade de chorar, de correr atrás do tempo e pedir para ele não passar e não levar
consigo aqueles sonhos de criança que eram tão bons. O nó na garganta lhe deu a
dimensão de sua dor—nem um ar fininho passava—só a vontade enorme de correr
para casa e ver se encontrava lá a sua Suzana. O que ela estaria fazendo àquela hora?
Talvez tomando um banho e passando aquele cherinho de alfazema—ela sempre tivera
aquele cheiro de gaveta de bebê! Pensou nas noites em que apenas dividira a cama com
ela—interessante que no começo do casamento eles compartilhavam a cama. Quanto tempo
não a tocava? Quanto tempo não passava a mão por aquele corpo gostoso e macio? E aquela
pinta na perna esquerda que era uma perdição, estaria ainda lá esperando uma
mordidinha? Sentiu vontade de correr para casa, tirar a roupa daquela mulher linda e dar
um banho de beiaw6kx naquele pedaço de mau caminho. Será que ela ia gostar de se afogar
nos abraços guardados por tanto tempo? Um carro buzinou chamando sua atenção e
Guilherme voltou à realidade. Sentiu uma tonteira como se tivesse sido acordado de um
cochilo depois do almoço de domingo—sacudiu a cabeça para espantar aquela
sensação de prazer interrompido “que será que está acontecendo? acho que `tô
ficando velho mesmo!”

Chegou ao prédio onde se encontraria com o cliente. Estava um pouco atrasado mas
inventaria uma desculpa qualquer para justificar o injustificável. Ficou esperando o
elevador. Na parede em frente, no hall elegante, havia um espelho e, distraído,
Guilherme olhou para lá percebendo que uma barriga atrevida insistia em aparecer debaixo
do paletó do terno. Não conseguia ver mais o corpo atlético de antes, aquele corpo de
nadador que desenvolvera em tantos anos de treino na piscina do clube. Seus cabelos
claros, que eram o sucesso entre as meninas, agora estavam tão ralos, parecendo tão sem
vida. Parou de olhar para o espelho inimigo—ele também tinha o direito de
envelhecer, ora essa! Mas acabou não resistindo e deu uma última olhada para conferir a
elegância, antes de se encontrar com o cliente importante. Não havia ninguém ali e ele
queria ver se os dentes estavam limpos—só tivera a oportunidade de mastigar um
chicletes depois do almoço e não queria dar um sorriso comprometido quando apertasse a
mão do Dr. Ferreira de Almeida. Sentiu um mal estar tremendo diante daqueles dentes
amarelos de nicotina. “Meu Deus!!! A vida resolveu fazer careta pra mim logo hoje que
tenho este super contrato pra fechar!” O elevador abriu a porta mansamente e uma
moça bonita o cumprimentou com um sorriso de dezessete anos “boa tarde,
senhor!” Sentiu-se um velho! Senhor! Apertou a alça da pasta, sorriu um sorriso de
canto de boca, respondeu ao cumprimento e pediu o vigésimo sexto andar. Notou que as
pernas da garota eram perfeitas e que o traseiro dentro daquela saia azul-marinho pedia
uma boa conferida. Mas não podia se entusiasmar porque o encontro com o Dr. Ferreira de
Almeida pedia muita concentração—a moça podia esperar um outro dia, quando ele
estivesse mais tranqüilo. Era obrigado a deixar passar uma coisa fofa daquelas, sem um
gracejo sequer! Definitivamente, estava ficando velho!

Quando saiu do escritório do cliente, Guilherme sentiu-se satisfeito porque o
resultado da transação ultrapassara as expectativas. Pensou na moça do
elevador—ela estaria lá ainda? Quando a porta abriu ele viu apenas um menino magro,
de uniforme, com gravata azul-marinho, que lhe disse “boa tarde, senhor!” Ficou
no fundo do elevador e duas ou três pessoas entraram com ele; olhou o traseiro do
ascensorista e pensou em como Deus favoreceu as mulheres com um “derrière” tão
bonito. Bom que a moça não estivesse lá—aqueles outros passageiros tirariam sua
liberdade de uma cantada. Ficou olhando para os números iluminados que indicavam os
andares enquanto os pensamentos corriam soltos na cabeça.

Estava fazendo calor quando deixou o prédio. Foi caminhando cansado para o
estacionamento. No portão de controle, pagou enquanto um empregado ia buscar seu carro.
Tirou o paletó e desafrouxou o nó da gravata que o sufocava. Que bom poder beber uma
cerveja gelada depois de uma negociação tão difícil” pensou ele. Lembrou-se de
Carlos que estava doente e de Daniel que viajara a serviço. De qualquer forma, Eduardo e
Felipe estariam no Costelinha—”será que eles estão passando pela mesma crise
que eu?!” Abriu a porta do carro, colocou a pasta, o paletó e a gravata no banco de
trás, entrou, deu uma gorjeta ao rapaz que trouxera o carro, e se despediu com um aceno.

Quando Guilherme chegou ao Costelinha, Eduardo e Felipe já estavam lá. Teve uma
sensação de desânimo e irrealidade—sentiu saudade de Suzana. Quase voltou atrás e
foi para casa. Mas decidiu que ficaria pelo menos um pouco para uma prosinha rápida.
Cumprimentou o pessoal e sentou pesado, como se, ao invés de carregar sua pasta,
estivesse carregando um saco de culpa. Pôs a pasta sobre a mesa e a abriu com cuidado.
Queria compartilhar com o amigos a assinatura do contrato mais sensacional que tivera em
mãos. Eles se levantaram para abraçá-lo e Eduardo gritou “Tião, hoje a gente tem
de comemorar. Traz um copo para o Guilherme aqui e capricha na mandioca frita e na
costela!” Tião, entusiasmado, mesmo sem saber o motivo da comemoração, veio
trazendo rápido o copo embaçado pelo frio do congelador e outra garrafa de cerveja para
ser aberta. Encheu os copos floreando a “mise-en-scène” e saiu para atender
outros clientes. O recém-chegado bebeu com prazer; a cerveja desceu bem.

Como sempre acontecia, os amigos falaram sobre o dia que havia sido tenso para
todos—o mercado não estava fácil! A conversa foi tomando rumo e Guilherme acabou se
esquecendo do encontro com os colegas de escola e do espelho no prédio do Dr. Ferreira de
Almeida. Não queria mesmo conversar sobre aquele tipo de coisa com seus amigos naquela
noite. Que diabo! às vezes aquilo era só um ataque de menopausa
masculina—existe?!—coisas de idade do lobo. Podia deixar estas coisas fúnebres
para outra ocasião quando estivessem completamente sem assunto.

Lá pelas nove da noite o grupo estava mais que animado e Guilherme falava sobre como
concluíra o negócio com o cliente naquela tarde. De repente, entrou um casal no
bar—gente que nunca estivera ali antes. Todos olharam ao mesmo tempo para a
moça—”que mulheraço!!!”—parecia até combinado. Para o namorado só
sobrou um comentário—”é menino mandado pra fazer serviço de homem!”;
depois disso ele foi ignorado completamente. Os dois se sentaram numa mesa perto da porta,
assim, à vista de todos que entravam, que saíam, que ficavam lá. A moça era uma
perfeição, do tipo “papai-do-céu fez uma e jogou a forma fora”; cabelos
escuros até os ombros, olhos castanhos e com pestanas imensas; um nariz sem defeito e uma
boca que “dava vontade de levar pra casa”, recheadinha de dentes lindos. Oh!
Deus! Aquilo era tentação demais! Não dava para desgrudar os olhos. Quando ela cruzava
as pernas, todos ficavam agitados e se ajeitavam na cadeira para ver se a excitação
diminuía. E o casal não economizava carinhos.

Guilherme voltou a pensar na tarde em frente ao espelho, esperando o elevador, e olhou
para os amigos como nunca fizera antes. Percebeu como Eduardo e Felipe, colegas de
natação no clube, atletas como ele, da idade dele, estavam tão diferentes agora;
pareciam exatamente com aquela imagem que o espelho tinha lhe mostrado naquela tarde.
Estavam apagados, acabados, tinham engordado e o cigarro fazia parte das mãos deles. E a
conversa! era sempre a mesma, não variava! O que estava acontecendo com eles? Tomou um
grande gole de cerveja para se livrar da sensação ruim que teimava em voltar.

A noite foi passando e Guilherme se dividia entre o antes e o agora, entre o sério e o
descompromisso, entre o medo de enfrentar a realidade e a vontade de compartilhar com os
amigos aquelas coisas que agoniavam seu coração. Resolveu ir ao banheiro—tanta
cerveja! Quando se levantou, a moça escultural de boca recheadinha de dentes brancos
também se levantou e caminhou para o mesmo lado. O velho hábito de conquistador veio à
tona quando ficaram frente à frente esperando que os respectivos toiletes fossem
desocupados. Parecia que o tempo tinha parado; ele ficou ali, olhando disfarçado para as
pernas lindas divididas por um joelho redondinho. Ela fez que não o via e continuava a
bater o pé direito no chão, acompanhando o ritmo da música que vinha lá do bar. As
portas se abriram e eles entraram quase que ao mesmo tempo. Guilherme sabia que os
banheiros se comunicavam de alguma forma e os sons podiam ser ouvidos. Fez um esforço
tremendo para não fazer o barulho natural de quando se está apertado demais. Foi fazendo
xixi bem devagar, sentindo até dor de não se aliviar com prazer. De repente escutou,
vindo do outro toilete, um som desagradável e conhecido, mas inesperado em se tratando
daquela beleza de mulher. Sem perceber, ele gritou, como fazia nos tempos de colégio,
“ô lá em casa!!!”. E começou a rir sem parar; não era possível que uma
mulher linda daquelas pudesse ser tão normal. Parou com a repressão e, com grande
alívio, terminou de fazer o melhor xixi da sua vida, cercado de muito barulho. Quando
conseguiu parar de rir, se arrumou, deu descarga, lavou as mãos e voltou para a mesa,
ainda com uma cara de quem acabara de fazer arte. A moça já estava na mesa dela com uma
expressão de raiva e vergonha, tudo misturado; conversava nervosa com o namorado que
pediu a conta logo em seguida. Quando eles saíram, Eduardo e Felipe reclamaram porque
não tinham mais aquela coisinha linda para ficarem olhando o resto da noite. Guilherme
olhou para o casal que caminhava para o carro e achou que aquela moça era
horrível—tinha perdido toda a graça porque não conseguira manter a fantasia.

Voltou-se de repente para os amigos e perguntou “por que nós começamos a
fumar?” Eles olharam para ele sem entender o que estava acontecendo. Voltou-se para
Eduardo e perguntou “há quanto tempo você não faz amor com a sua mulher?”
Eduardo parou de mastigar e franziu a testa fazendo uma cara de surpresa. Sem esperar
resposta, Guilherme perguntou a Felipe “quando foi a última vez que você levou a
sua mulher ao cinema?” Como se não quisesse ouvir as respostas, que ele já sabia
quais eram, Guilherme se levantou e disse “tenho de ir agora porque a Suzana pode
estar precisando de mim”; pegou suas coisas e saiu, desejando que ela estivesse
realmente precisando dele. E os amigos ficaram lá se perguntando “o que deu nele?!
Ficou doido ou o quê?! Ô Tião, traz mais uma e a conta porque já ‘tá ficando tarde
demais!”

Na rua, sentindo como a noite parecia especial, Guilherme pegou o carro, pôs dois
chicletes na boca e mastigou com força querendo se livrar do gosto incômodo de cerveja,
cigarro, da carne de porco, da raiva que estava sentindo da vida. Pensou mais uma vez na
moça do banheiro e sentiu o estômago embrulhado.

Chegou em casa, abriu a porta devagar, entrou e colocou a pasta sobre a cadeira; as
crianças já estavam dormindo. Suzana, assentada na sala, lia um livro e escutava “O
Lago do Cisne”, de Tchaikovsky—há quanto tempo eles não iam a um concerto!
Ficou de pé, junto à porta e olhou para ela com uma ternura imensa. Ela estava absorta
no livro. Pôde admirá-la devagar—os cabelos ainda eram lindos, mesmo com aqueles
fios brancos, o nariz continuava o mesmo e a pele ainda muito bem cuidada. O cheirinho de
alfazema estava pela sala toda. Quis se mover, correr para ela e fazer uma declaração de
amor. Não conseguia—as pernas tinham oitenta anos. Quis chorar, choro de perdão,
mas não conseguia porque tinha vergonha de si mesmo. Quis andar devagar e passar as mãos
naqueles cabelos brilhantes, mas não podia porque as mãos tremiam demais e tinham
perdido o treino. Colocou a chave sobre o aparador e caminhou arrastado para a cadeira de
Suzana. Ela levantou a cabeça e olhou para ele indiferente, perguntando com voz cansada
“você vai querer jantar?” Ele abanou a cabeça dizendo “não, já comi
alguma coisa antes de vir”. A música parou e ela desligou o aparelho. Disse que ia
dormir e foi para o quarto.

Guilherme seguiu a mulher e esperou que ela lhe contasse os casos do dia. Ela não
falou sobre as crianças, não falou sobre a mãe dela ou a dele, não falou sobre nenhum
filme, sobre nenhum concerto. Arrumou os cabelos displicente, pôs uma camisola qualquer e
foi para a cama. Ele olhava todos os movimentos da mulher. Ensaiou uma conversa mas ela
disse “está tarde; eu estou cansada e preciso dormir. Amanhã a gente conversa,
está bem?!”

Ele foi ao banheiro, escovou os dentes e tomou um banho rápido—até estranhou que
estivesse fazendo aquilo. Depois foi para a cama e chegou para perto de Suzana—aquele
corpo ainda era o mesmo e aquele cheirinho era um convite. Pensou na pinta da perna
esquerda. Suzana estava ali, era linda e era sua mulher. Chegou mais para perto dela e deu
um beijo no ombro nu; as mãos nervosas foram passando pelas pernas quentes ao seu lado.
Sentiu-se cheio de desejo, lembrou dos colegas de escola, esqueceu-se do espelho. Os
cabelos dela se esparramavam pelo travesseiro e ele notou como eles continuavam macios.
Abraçou-a com cuidado e suas mãos seguraram os seios da mulher—eles continuavam
firmes e desejáveis. Quando ele lhe beijou o pescoço ela se mexeu um pouco impaciente e
falou baixinho e cheia de desânimo “Guilherme, eu estou realmente muito cansada. A
gente pode deixar para uma outra ocasião. Boa noite”.

“Frutas Artificiais” and “Sonho Quebrado” are the
original titles of these short stories. Their author, Adelaide Bouchardet Davis, born in
Visconde do Rio Branco, Minas Gerais state, is a writer and professor of Portuguese at
Denver University, Colorado, USA. You can reach her via e-mail: addavis@du.edu
Copyright © Adelaide Bouchardet Davis

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