The King of the River

The King of the River

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By Hélio Pólvora

À memória de Pedro Taves, pescador.

Uma decisão de vida ou de morte não se forma de repente: fica no fundo do pensamento,
no leito barrento das idéias, como se morta, e um dia, uma hora, um instante vem à tona.
E vindo à tona, salta como um peixe na piracema.

Assim aconteceu com o Velho. Um dia, na sua cabana da boca do rio, perto da Baía
Escondida, ele acordou, talvez na cama de varas, talvez de um cochilo nas sombras do
copiar, e descobriu que tinha de fisgar o Rei dos Surubins. A decisão não lhe foi
proposta. A decisão não lhe foi imposta. Espreguiçando-se no seu despertar, o Velho
aceitou-a com a resignação do tamanduá e da sucuruju: enlaçados, asfixiados, sabem que
vão morrer.

O Velho sabia que ia matar. Matar um peixe do tamanho de um homem, quem sabe maior que
um homem, um surubim de cinqüenta ou sessenta quilos. O seu amigo Surubim que ele se
habituara a ver na Baía Escondida com a curiosidade e a doçura de quem se acostuma, por
exemplo, à companhia de uma mulher. Ou de um amigo. O Velho já tivera mulheres; agora
tinha o Surubim. Sabia dos seus refúgios, ora no canto da água, embaixo da goiabeira
brava, quando fazia sol, ora nos caniços da margem sul, em épocas de frio e chuva.

Da canoa ou do barranco o Velho procurava o Surubim sempre que ia pescar pacus, jaús,
carimatás e piraguajuras. Há uma alma viva nos matos e nas águas, ele pensava. O
espírito da Baía Escondida é o Surubim. Homem algum é doido a ponto de querer matar um
espírito, uma alma encantada, um assombro.

Por vezes ele não precisava atirar frutas na água para localizar o peixe, nem tocar a
gaponga junto da canoa. A gaponga imita o baque de goiabas na água. Bastava-lhe, de cima,
estender os olhos e divisar nas águas rasas o dorso liso. Então a conversa começava:

Olá, meu velho.

O surubim mostrava a cabeça chata.

Tudo bem, Velho?

As águas quase não se mexem. De longe, sei que a Baía Escondida se parece nesses
instantes com um charco. Um charco escuro, mais para chumbo do que para prata. Mas daqui,
da canoa que eu imobilizo com o remo a baía me rodeia, é uma superfície de vidro ora
fosco ora transparente. Depende do sol que ou se mostra com uma luz cegante, tipo facho,
ou enfraquece como toco de vela.

Me distraio à procura de rachaduras no espelho—os peixes que saltam. Círculos se
espalham, as gretas no vidro da baía cicatrizam. Segue-se um silêncio agoureiro,
silêncio pressago. Velho, você está bem?, pergunto ao meu reflexo deformado na água.
Quem vive solitário conversa consigo mesmo. Aqui no meio da baía estou sozinho. Com
certeza o Rei dos Surubins esquenta o dorso entre os caniços da margem. Onde, de que
lado? Tenho vontade de pedir-lhe: Venha cá pro meio conversar um pouco.

Cai uma goiaba silvestre.

Sim, ele precisava matar e salgar o Rei. Só que não sabia até então. A cunhãzinha
foi quem lhe revelou aquela decisão já tomada e no entanto escondida no fundo da
cabeça. A cunhãzinha que aparece pra varrer a cabana, assar pacus no espeto, preparar
caldos de mutuns e ler a Bíblia. A Bíblia preta que ela traz apertada contra os peitos
nascentes.

Posso ler?, pergunta a cunhãzinha, depois de cumprir os afazeres domésticos e
enroscar-se a seus pés, no copiar, como uma tentadora cobra de olhos verdes. Ele faz
sinal que sim. Naquele dia, ainda manhã ou tarde, a cunhãzinha abre a Bíblia na
Epístola de S. Paulo Apóstolo aos Efésios. E lê: “Porque o fruto da luz consiste
em toda a bondade, e em justiça, e em verdade.” O Velho estremece. Estremece porque
sabe então o que já sabia mas se negava a saber: que ia fisgar o Rei dos Surubins com um
anzol especial de aço encastoado.

Se sentir dor no peito, ponha Isordil embaixo da língua, recomenda a cunhãzinha.

Não vou esquecer, cunhã.

E se estiver agoniado, sem ar, mande recado que eu venho logo.

Recado por quem, o Velho pergunta.

Ambos se calam. O Velho vive solitário na cabana da boca do rio.

Tibum—cai a goiaba na água. Pesada, endurecida pelo inverno e avermelhada pelo
estio, cai a goiaba. A goiaba. A goiabeira brava soltou-a com um suspiro de alívio que o
vento transmite. A goiaba abre um furo circular na água empoçada do remanso—mas a
água é mais rápida que ela: antes que a goiaba afunde, a água se fecha, o vidro
partido do espelho embaçado se recompõe.

Tremem os caniços. Eu sei, eu sei. Tremem e pendem como hastes de milho ou de trigo de
súbito vergadas pelos grãos. Por elas passa veloz um dorso escuro. O Rei tem dorso da
largura de um pneumático. Ele avança, fende a água com a quilha do focinho. E antes que
a goiaba chegue ao fundo, antes que se deposite no fundo lamacento, o Rei colhe-a num
mergulho sinuoso.

Uma corrida desde os caniços da margem sul até a margem norte. Simples, direta e
determinada. Como se o Rei, ao invés de dormitar, estivesse à espera do justo momento de
entrar em cena na Baía Escondida. Os juncos são o seu reposteiro, as águas paradas por
trás dos juncos—o seu camarim. Ele espreita, tenso, atento da cabeça à cauda. E
quando o instante soa num relógio invisível, disparado pelo baque da goiaba na face do
espelho, ele investe. Qual seta. Qual dardo. Fulminante e certeiro. Um cão.

Aqui, Rei do Rio. Aqui—eu lhe digo num sopro, estalando os dedos. Tenho vontade
que ele, o surubim, em vez de peixe fosse mesmo um canzarrão. Um peixe-cão. Pois não
existe peixe-boi? Então ele e eu, depois de esquentar o lombo ao sol da Baía Escondida,
e depois de espreguiçar os membros, sairíamos da água, trotaríamos lado a lado, como
dois amigos velhos, para a minha cabana. E eu lhe daria um osso com fiapos de carne.

Aqui, Rei do Rio. Aqui, bichão. Mas ele não me escuta. Não quer conversa. Acabou de
comer a goiaba, está embaixo, quieto—um pedaço grosso de tronco tisnado que as
águas represam no leito da baía.

Do copiar, olhos apertados na tentativa de enxergar melhor, o Velho vê a cunhã
desaparecer na curva com um andar que já começa a ondular-se como o das cobras. Ainda
sente o cheiro do cabelo, o perfume de umiri. Tem a impressão de que a menina-mulher
continua ali perto, na mata—os cabelos pretos e escorridos são os cipós, os peitos
são as tetas trêmulas das macacas que pulam nas árvores, as coxas semelham os troncos
de macia madeira amorenada. Cheirosos cedros gêmeos, bálsamos. Ah, mulheres. Os homens
passam, elas continuam em tudo, o Velho pensa em voz alta.

E ri. Estou mesmo velho, estou filosofando.

O espelho d’água varia com as estações. As luas mudam. Chegam os ventos que deitam o
mato mole dos baixios e encompridam as águas. As lufadas e chuvas oblíquas que encrespam
a superfície espantam o peixe. Não é bom pescar em baía de água doce que mais parece
mar picado. As árvores se desnudam no outono; magras, peladas, elas espetam os barrancos
e mais adiante se conglomeram em mata fechada—mata escura do tempo da criação do
mundo. Vem a temporada de sol e a cor da baía passa do barro ao cristal, do baço ao
transparente. Nas semanas de sol é mais fácil distinguir o dorso do Rei do Rio, mesmo
que ele nada sob a tona.

É o surubim mais velho e mais pesado da Baía Escondida. O rio o trouxe, o rio o leva.
Ele volta ao rio e reaparece sempre no remanso da baía. Como em busca de aconchego. Eu
esquento sol no terreiro da cabana e, nas invernias, levo as mãos ao fogo de lenha, as
palmas para baixo, o calor subindo pelos braços até o peito. O fogo—o meu cobertor.
O sol—o meu tônico. Fogo e sol juntos—a suspensão que expulsa do corpo os maus
humores, a bile negra, os catarros, as veias obstruídas. E eu alivio o fole dos pulmões.

Acordou banhado de suor frio. O coração disparado batia em todo o corpo, as pancadas
chegam até as pontas dos dedos. Pesadelo. O Velho sonhara que estava na varanda da casa
de Pedro d’Ávila, senhor daqueles matos, rios e igapós. Bebiam uísque com um turista.
“Emborque”, disse Pedro d’Ávila. “Faz bem às coronárias, desentope
veias.” E ele, que preferia aguardente pura, de alambique, bebia por educação.

Conversavam sobre peixes. “Corre uma lenda na Baía Escondida sobre um surubim de
oito palmos”, falou o turista. “Não é lenda, é verdade”, disse Pedro
d’Ávila, no sonho. “O Velho viu.” “Viu e deixou fugir. Que pescador é
esse?”, acusou o turista. “Calma, ele pegou o Rei dos Surubins”, disse
Pedro d’Ávila. E bateu palmas.

Veio uma criada. “Pode servir”, ordenou Pedro d’Ávila. O peixe não cabia na
imensa travessa de prata. Do tamanho de um homem, transportado por dois homens. Começaram
a comer. Garfos e facas atacavam o dorso, os costados, arrancavam pedaços dos quais se
desprendia ainda a fumaça do assado.

Inútil: a carne inchava na boca. Parecia papel, parecia palha. Sem gosto, sem tempero.
O velho engulhava. Não conseguia engolir. Via espanto e censura nos olhos humanos do
surubim. Dobrou-se em dois, vomitou na toalha de linho aquela carne que lhe parecia sair
do ventre, do peito, do sexo de um homem—do corpo de um velho amigo.

Despertou de fôlego curto, o peito espetado por dores finas, como se dezenas de
punhais o penetrassem. Tateou a mão em busca do Isordil.

Me pus a pensar: se alguém fisgar o Rei do Rio, pode comprar mantimentos para um mês,
dois meses, mais roupas e remédios.

Quantos quilos ele tem? Quarenta, cinqüenta? Eu calculo quarenta, por baixo. O rei dos
surubins.

Não há sonho sem uma realidade anterior ou posterior que lhe está afeta, pensou o
Velho. Ele se lembrava muito bem do encontro. Chegou, tirou o chapéu e se recostou no
gradil; chapéu pousado no peito, ouviu mais do que falou. Aquele turista estava à
procura de emoções fáceis, se dizia pescador e naturalmente queria impressionar os
amigos no trabalho e no clube com uma foto ampliada em que aparecia sorridente ao lado de
um surubim gigantesco por ele arpoado nos igapós. Para os filhos, um herói; para a
mulher loura que naturalmente já começava a desprezar-lhe o ventre flácido e a bazófia
alcoólica, a possibilidade, quem sabe, de redenção. O turista virou-se para ele e
perguntou: “Ouvi falar na lenda de um peixe gigantesco nas águas da Baía Escondida.
Uma lenda antiga, não é?”

Não é lenda, é a pura verdade, rebate Pedro d’Ávila antes que o Velho fale. O Velho
viu. Viu e deixou escapar?, o turista insinua a zombaria. Novamente Pedro d’Ávila,
ocupado em servir doses de uísque com gelo, se adianta. “O Rei dos Surubins e o
Velho são amigos, se conhecem há anos, se procuram na baía, conversam.”
“Conversam, é? E sobre o quê haveriam de conversar um homem e um peixe, senão
sobre anzol reforçado, isca e captura,” indaga o turista. Pausa. Pedro d’Ávila
estende um copo ao Velho. “Beba. Faz bem às coronárias, desentope artérias.”
O Velho fica com o copo na mão a fitar o líquido ambarino com a mesma fixidez com que na
baía fita o dorso azul e pardo do Surubim, aquela fixidez sonhadora no olhar que divisa a
barriga branca do peixe de quatro arrobas, as estrias negras; um olhar vítreo com que
talvez pretenda hipnotizá-lo e trazê-lo à margem e dele fazer um cão que lhe lamba os
pés nas frias manhãs outonais. O Velho prefere aguardente destilada, para ele uísque é
perfumaria de branco. Bebe um gole com um furtivo jeito receoso. O chapéu furado na copa
está pousado agora no encosto da cadeira que Pedro d’Ávila, senhor daqueles horizontes,
lhe empurrou. “Quanto quer pelo Rei dos Surubins?”, pergunta o turista com
aquela facilidade dos que podem comprar tudo, homens e peixes, saúde, solidão e
liberdade. “O quê?”, estranhou o Velho. “Ele pergunta quanto você quer
para lhe pescar o Rei”, Pedro d’Ávila traduz. “Eu não pego o Surubim, eu
respeito o Surubim”, o Velho responde. “Quatro arrobas, vamos supor que dê
quatro arrobas “, o turista murmura. Parece fazer contas. E propõe: “Dou
cinqüenta mil, mas quero o peixe salgado, inteiro. Quero o peixe nu, completo, tal como
veio ao mundo, cresceu e envelheceu na Baía Escondida.”

No outono e sobretudo no inverno ele prefere os caniços da margem sul. No estio, se
aconchega nas águas sombreadas pelas goiabeiras e limoeiros bravos. Ali a baía tem uma
cor de breu diluído. O Rei do Rio, imóvel, dá impressão de petrificado na gelatina
escurecida. Um peixe ancestral.

Eu chego na canoa, aprôo em terra firme, subo o barranco. E lá de cima, andando na
ponta dos pés, me acercando da ribanceira quase a pique, aperto os olhos, vejo o Rei dos
Surubins petrificado. Um fóssil. Eu rio e lhe aceno um adeus mudo. Esteja em paz, amigo.
A baía é a sua casa, você manda e não pede. A baía também é sua, o peixe me diz no
meu pensamento. É minha, sim—mas até quando? Para sempre. Ora, para sempre. Não
existe para sempre para um homem velho nem para um peixe do seu tamanho descomunal. Um dia
desses a morte me pega. E você espeta a guelra num anzol de aço. O Rei dos Surubins ri.
Ou sou eu quem solta esta risada curta e baixa de escárnio, de desafio?

Cinqüenta mil, o Velho se põe a matutar na cama de varas, no copiar na boca do rio,
debaixo de árvores esgalhadas onde costuma enroscar-se a sucuruju. Ele bem que precisa de
uma pajelança. Já tentou encantos e rezas da rude medicina indígena. Tempo perdido, os
pajés não têm força para espantar o mal que lhe estanca o ar no peito e lhe espeta
aquelas dezenas de facas de afiado gume. A tonteira, um coração que se agita como
sagüi, descontrolado, irrequieto e surdo dentro da caixa dos peitos. E que nos seus
destemperos o deixa largado, sem vontade, um traste, um molambo atirado a um canto,
incapaz de levantar a vista e abranger as belezas nascentes da cunhãzinha, sopesar com o
olhar os dois arroios líquidos que lhe brotam do peito, aqueles dois olhos d’água por
enquanto secos mas que afogam a desilusão e fortalecem as fraquezas da idade. Ah, pensa o
Velho, eu preciso mas é de pajelança de branco. Feitiço de branco, quando dá certo,
cura de vez.

A gente se acostuma com tudo. Com um gato nas cinzas do fogão, com um cachorro
estirado na porta do casebre, com uma mulher, com um peixe no rio. E passa a regular a
vida pela companhia que tem.

Para se descobrir viva, a pessoa olha o cão, apalpa a mulher, corre um dedo no dorso
do gato, olha o peixe. Com enlevo. Um reconhecimento sereno. Um cego tateia no escuro,
encontra a cadeira, a panela, a parede, a cama, a mulher. Um velho de olhos cansados
porém abertos troca com um surubim um olhar cúmplice e ambos povoam a sua solidão. Um
na água, sempre na água, o outro em terra e na água, na canoa que se move ou na cabana
que é uma canoa encalhada.

“Nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei lá; o Senhor o deu, o Senhor o
tirou.” A cunhãzinha faz uma pausa na leitura do Livro de Jó. O Velho escuta até
mesmo o silêncio. A cunhãzinha retoma a leitura: “Pereça o dia em que nasci e a
noite em que se disse: Foi concebido um homem.” “Ele vai se revoltar contra
Deus”, disse o Velho. “Não, tio. Jó perde tudo e se humilha cada vez
mais.” “Não existe homem assim, capaz de suportar todos os sofrimentos sem se
revoltar. Jó teria de ser tão humilde quanto o próprio Deus, se é que Deus é
humilde”, o Velho argumenta. “Não se esqueça que Deus também é homem e que,
atirando tantas desgraças nos ombros de Jó, quis testar a paciência e a humildade dos
homens”, a cunhãzinha repete a lição que ouviu da missionária. “Não, esse
homem não existe”, o Velho teima. “Perder tudo o que tem, rebanhos e filhos,
amigos e honrarias, cobrir-se de doenças imundas e ainda fazer penitência de pó e de
cinza? É demais, é demais”, o Velho geme. “Tio, Deus recompensou Jó, Deus lhe
devolveu tudo e em dobro”, a cunhã adverte.

A manhã vai alta, o sol se pendura no meio do céu, é um lustre-luzeiro. Com um
suspiro a cunhãzinha fecha a Bíblia e, absorta, coça um joelho. Um cheiro de pacu
recém-assado chega da cozinha. Esse tal de Jó, se é que existiu mesmo, devia ser mais
moço do que eu, alerta uma voz dentro do Velho. Ainda podia esperar. A voz interior se
cala, como à espera de uma confirmação, à espera talvez de testemunhar o poder
corrosivo de suas palavras. De onde vem a voz? Dos infernos que trago em mim? Do próprio
Macaxeira que entrou em mim? Jó perdeu os rebanhos, os amigos, a família—a voz
recomeça o discurso. Mas não perdeu a fé. Seu caso é diferente. Diferente—e por
quê?, o Velho quer saber. Diferente, sim: você nunca teve fé a não ser em você mesmo,
na sua habilidade para caçar e pescar. Perdendo a saúde você perdeu a fé. Perdeu a fé
na virilidade. A voz se extingue, revira dentro do Velho o veneno das insinuações. É
verdade, eu perdi mais do que Jó, o Velho admite por fim. Eu não tenho mais salvação.
Maldito o dia em que nasci.

Eu pescava de carreira. Peguei uns pacus beiradeando o barranco. Fazia os movimentos
certos, como se alguém de fora, um observador interessado, me houvesse programado: anzol,
linha, vara, canoa, remo e pescador. Não exatamente nesta ordem: ações quase
misturadas, quase simultâneas, praticadas com a precisão, a indiferença e a fatalidade
dos relógios, tudo no instante certo, a mesma naturalidade da água a escorrer.

Os pacus no fundo da canoa, vítreos. Eram lascas de vidro ao sol, estilhaços de vidro
manchado. Neles eu queria me olhar, queria me ver. Mas era a água da baía, de uma
clareza translúcida, que me refletia um vulto quase dobrado ao meio.

Senti uma fisgada no peito. Eu, que havia fisgado pacus e gamelas, acabava de engolir
um anzol de fina ponta de aço que me rasgava as carnes em cima do coração. Uma fisgada
certeira, funda, penetrante. Parei. O suor brotou. Eu suava, eu era uma fruta madura de
que se espreme o suco. Testa, axilas, peito, palma das mãos. Um suor antes frio que
morno, uma onda que descia da nuca ao baixo-ventre, passando pela linha do espinhaço. Ah,
se eu me mexesse o anzol entraria mais nas minhas carnes internas que deviam ser tenras e
róseas como as carnes dos cordeiros; se eu saísse do lugar, ali em cima da canoa,
decerto o anzol revolveria o coração como uma faca que o criminoso enfia, enfia e
revolve na ferida para matar mais depressa.

Ah, eu tenso, o coração a pulsar na guela, um tambor a bater nos ouvidos, nas
têmporas—o medo. E os pulmões comprimidos, a respiração sufocada, uma poderosa
golfada de ar que se reduz a um sopro—o sopro com que se extingue uma vela. A dor da
ferida alastrando-se por todo o peito, subindo do fundo para a superfície do corpo,
varando a pele, mergulhos e ascensões, lacerações, a lâmina que corta e recorta.

Ignoro quanto tempo suportei aquele anzol a me transfixar, minha mão esquerda
segurando a linha, a mão direita a sustentar o remo fincado, a canoa parada, o sol quente
da manhã adquirindo na minha visão turva a precipitação de um súbito crepúsculo
negro.

Tombei sobre as pernas. Com o desamparo com que caem goiabas bravas ou limões na
baía.

A cunhãzinha estremece. O olhar do Velho se afasta da boca do rio, desemboca na Baía
Escondida, procura o canto sob a goiabeira brava onde a água forma um remanso escuro,
procura a margem dos caniços, das lianas e canaranas. “Eu ainda tenho o peixe”,
o Velho grita. A cunhãzinha olha-o com assombro. “Que peixe, meu tio?” “O
peixe grande, o Rei dos Surubins”, o Velho explica em voz mais branda. A cunhã se
desenrosca dos seus pés, se levanta, é uma cobra sedutora, a cunhã, assim de pé,
pronta a soltar o bote e enroscar na vítima as dobras elásticas do seu corpo. “Vou
fazer o seu prato, tio. Pacu assado com farofa d’água. O tio come, dorme e repousa.”

Um despertar agoniado. As pernas parecem travadas. As juntas perras. Envelheci. A dor
agora se localiza na nuca, as mandíbulas não querem juntar as duas fileiras de dentes
incompletos.

Do jeito que estava, sobre os pacus, fui me apalpando, me reencontrando. Estirei as
pernas, estirei os braços, dominei aos poucos aquelas peças que pareciam inteiras, sem
dobradiças. E me sentei. Nos ouvidos que antes recolhiam uma tempestuosa maré interior,
quando o anzol me fisgou, eu distinguia agora outros sons. Ouvi, por exemplo, a marola.

A marola que ele faz, o Rei do Rio, quando sai do recanto de água escura ou dos
baixios dos caniços para o meio da Baía Escondida. Mas ora essa, não havia caído
goiaba nem jenipapo nem outro fruto silvestre já bicado por passarinhos. E no entanto uma
quilha certeira fendia a superfície espelhante. Vi o Rei chegar-se, flutuar pela metade
perto da canoa, no lugar onde antes estivera o meu anzol.

Sei que ele me olhou. Sei bem. Como sei que ele se estirou todo, se esticou para que eu
o medisse. Medi uns oito palmos de comprimento, com a vista. E fechei os olhos, desejando:
Vá embora. O Velho ainda não morreu. Depois a gente se vê. Depois a gente conversa
nesta baía erma.

É verdade que existe um surubim enorme na Baía Escondida, me perguntou o turista. É,
sim senhor. Você já o viu? O Velho não apenas o viu uma vez, senão duas vezes, dez
vezes, cinqüenta vezes. Ele e o Velho conversam como dois bons amigos. Se conhecem e se
respeitam, informou Pedro d’Ávila. É o senhor proprietário destas matas e rios,
incluindo a Baía Escondida. Talvez lhe tenham dado carta régia por serviços públicos
relevantes. Tem um copo de uísque na mão, estamos os três na varanda, eles sentados em
cadeiras de vime, eu recostado no gradil, chapéu no peito. Quantos metros tem o surubim,
o turista pergunta. Uns oito, eu lhe digo. Oito metros? É ver para crer, comentou o
turista. O Velho não mente, o Velho é sério, garantiu Pedro d’Ávila. E quanto pesa
mesmo?, o turista insistiu na conversa. Uns cinqüenta quilos, talvez mais. Meu Deus,
disse o turista. Apenas duas palavras: Meu Deus. Em tom baixo, de reflexão, de espanto.
Esvaziaram os copos e Pedro d’Ávila me ofereceu uma dose. Beba, faz bem às coronárias,
desentope veias, ele disse. Bebi para ser delicado, porque aprecio mesmo é aguardente da
pura. Meia hora depois, se tanto, o turista propôs: Você pega ele pra mim. Não me
perguntou; afirmou. Sem me consultar, sem me olhar. Você pega ele pra mim. Embaraçado,
com o rosto lambido por um estranho rubor, eu fingi estupidez. Pegar quem, pegar o que?
Ora, o surubim. O Rei dos Surubins? A voz do turista tinha um desafio de bêbado. Ele se
chama Rei dos Surubins, é? O Velho deu-lhe este nome, disse Pedro d’Ávila, revolvendo o
fumo do bocal do cachimbo e acendendo-o com um isqueiro. Também o chama de Rei do Rio ou
Rei das Águas. Você pega ele pra mim, insistiu o turista. Eu lhe pago. E levantou-se. O
olhar sonhador varou o bosque, do outro lado do bosque ficava a Baía Escondida, o
surubim. Eu quero aquele peixe. O surubim de cinqüenta quilos, sei lá, o surubim de oito
metros, sei lá. Por ele eu lhe dou trezentos mil. Salgado, está certo?

A cunhãzinha vem me ver. Ela é quem escolhe os dias de limpeza. Chega no seu passo
furtivo, o cabelo preto e escorrido cheirando a óleo de umiri. Está ficando dengosa, eu
penso sentado no copiar, vendo-lhe o andar meio requebrado de réptil. Está botando corpo
e jeito de mulher. Traz a Bíblia de capa preta. Uma missionária indígena, eu penso sem
conter mais o sorriso de boas-vindas. Bom dia, tio. Bons olhos te vejam, menina. Está
melhor, tio? Vou vivendo como posso, é o que lhe respondo.

O sol bate nos fundos e no lado da cabana, o copiar é um poço largo de sombras.
Quando os ramos das árvores rangem como cordas de mastro, as sombras bailam no chão,
trepam nas paredes de barro. Quer um caldo de mutum?, pergunta a cunhãzinha. Está bem.
Sentado estou, sentado permaneço. Garças pousam nos baixios do rio. Maitacas fazem uma
algazarra de endoidecer nos catulés. Depois eu asso os pacus, avisa a cunhãzinha, lá de
dentro, mexendo nas trempes.

Chega a hora de ler a Bíblia. A cunhãzinha vem para o copiar, senta-se no chão junto
dos meus pés inchados e nodosos e enrola a saia entre as coxas. As coxas morenas foram
arredondadas e alisadas a capricho por um mestre torneiro. Mulheres. Devo estar velho, me
desabituei a mulheres. Primeiro, a companhia que a princípio aceito com alvoroço, à
espera, mais tarde, que elas se cansem e vão embora. Depois, me desabituei do desejo. O
que acontece quando o homem envelhece e perde a força das virilhas?, me perguntou certa
vez um rapaz com quem eu pescava gamelas de quinze a vinte quilos cada. Homem é uma
fogueira, arde e crepita na mocidade, soltando fagulhas e rolos de labaredas. O tempo
corre, luas e sóis se sucedem, o fogo abranda. Até apagar-se, completou o rapaz. Até
virar cinza quente, cinza morna, cinza fria, eu confirmei. A cunhã levanta a vista, seus
olhos são verdes. Escute, ela me diz. “Porque o fruto da luz consiste em toda a
bondade…” Quem disse isso? O Apóstolo S. Paulo na Epístola aos Efésios. Bondade,
bondade. A luz está na bondade. Eu estremeço. A luz divina, a graça divina, a luz da
salvação. A cunhãzinha não sabe que eu vou matar. Matar friamente, de madrugada.

Sem desconfiar do meu intento, a cunhãzinha parte. Seus cabelos parecem ficar para
trás, na curva do rio, confundidos com os corimbós e outros cipós. Os peitos da
cunhãzinha estremecem agora, rosados, na barriga dos bugios da floresta. O sol da tarde
bate no copiar, desfalecido sol, desce pelas minhas pernas de veias grossas, ilumina os
pés inchados.

Ao entardecer eu vou à boca do rio e dou o meu aviso ao surubim do tamanho de um
homem: Cuidado, amigo. Eu vou te matar. Eu preciso da tua carne em salmoura pra pagar a
pajelança dos brancos da cidade grande.

O vidro de formol e a seringa, objetos que o turista lhe deu para injetar salmoura na
carne do peixe, estão na mochila de palha. Acocorado na cozinha, o Velho tempera o anzol
de aço em banha de jaú. O fogo estala, a banha salta e morde-lhe a cara tomada pela
barba rala.

Anzol de aço especial, dois grossos fios trançados. O Velho olha com desgosto a vara
de bambu-jardim com que fisga pacus, carimatás e piraguajuras. Grossa porém fraca, o Rei
dos Surubins pode quebrá-la com um simples tranco de sua cabeça achatada.

Vai pescar, tio?, pergunta a cunhãzinha.

Vou pegar o Rei dos Surubins.

O Rei dos Surubins é uma velha lenda do meu povo.

Não é lenda, é verdade verdadeira. Eu vi com estes olhos que agora te vêem. Vi
muitas vezes, cunhã.

A cunhãzinha se prepara para moquear a paca. Frutos despencam a intervalos na Baía
Escondida.

Vá embora, grita o Velho de cima do barranco.

O peixe parece petrificado em camadas de água solidificada.

Fuja, aconselha o Velho. Fuja rio acima. Fuja que ainda é tempo.

O Velho tem na mão o anzol volteado e temperado em banha de jaú.

Aquele mesmo anzol que costuma fincar-se no seu peito e rasgar-lhe as entranhas.

Entrou de canoa no igapó, cortou uma vara de canduru, a mais tensa e flexível que
encontrou. Três metros e meio. O branco do canduru é madeira sem a menor serventia.
Desbastado, o canduru revela um tesouro—o seu coração secreto, núcleo duro que nem
pedra, vermelho âmago incorruptível.

Agora faltava a linha.

Fuja, meu velho. Vá embora da Baía Escondida. Vá comer goiabas rio acima. Alguma vez
eu já lhe fiz algum pedido? Pois então faça o favor de me escutar. É por seu bem, é
pelo meu bem.

A linha tinha de ser náilon 160. O Velho fez a ponteira com cordinha de náilon de
seda. Para um peixe especial—vara, anzol e linha especiais. E um pescador especial, o
Velho da Baía Escondida.

Vou matar friamente. Vou matar deliberadamente. Estou calmo. Agora que começo a pôr
minha decisão em prática, agora que resolvi sobreviver, me sinto mais forte, um sangue
mais fluido corre desatado nas veias. Mais moço, dez anos mais moço.

Fecha a cabana, pendura no ombro a mochila com o sal, o formol e a seringa, na mão
direita vai a vara de pesca com a linha e o anzol. A canoa o espera na boca do rio.
Insensível a picadas, atravessa uma nuvem de meruins, piuns, mosquitos e mutucas. Leva um
tororó de frutas no anzol.

Manhã cedo, o dia acabou de romper. O Velho sai da curva da picada e avista a
cunhãzinha no ancoradouro.

Vou sozinho, cunhã.

Ela não responde.

É trabalho pra homem, cunhã.

Eu sei.

Me espere que eu volto.

Não, diz a cunhãzinha.

Nesse caso, adeus.

Tenho uma coisa pra você, tio.

O que é?

É coisa só pra ver, uma coisa pra mostrar.

Pois mostre logo.

A cunhãzinha baixa os olhos, pega o vestido nas pontas e puxa-o pela cabeça. Continua
de olhos baixos. O frio da manhã lhe percorre o corpo com a pungência de labaredas
vorazes. A cunhãzinha vira-se de costas, oferece de novo a frente do seu corpo nu. Do
peito parecem manar dois olhos d’água, após o ligeiro declive do ventre começa a
enseada das virilhas, que, fosse ela moça branca, estaria recoberta por uma rala
canarana, aqui e ali cortada por moitas de tajás.

Me espere que eu volto, o Velho pede.

Não, diz a cunhã.

Um bando de macucaguás observa os dois vultos imóveis. O Velho entra afinal na canoa
e desaparece no rio.

Culpa não tenho, eu mandei você fugir e você teimou em ficar. Vou para o meio, vou
manobrar a canoa, o remo e a linha como só eu sei fazer, sou mestre nisso, você sabe,
quanto mais velho e pesado você fica mais lhe cresce a gula, posso muito bem imitar o
baque de uma goiaba brava na água, afinal para que pensa que eu trouxe este tororó?
Você não me engana, sei que está entre os caniços, assim que ouvir o tibum você corre
por entre o capinzal, forma uma marola, seus olhos saltados se recusam a ver qualquer
coisa que não seja a isca, você está cego, engoliu o anzol de aço que eu próprio
temperei em banha de jaú, o anzol vai lhe rasgar a guelra, pode resistir, pode sacudir a
sua cabeça chata e arrastar a canoa, temos tempo, eu tenho o dia inteiro, a cunhã com
certeza me espera, ela se mostrou toda para mim e me deixou com um bolo na garganta, acha
que estou no fim e quer me dar o presente que tem, puxe à vontade, o bolo me corta a
respiração, será que vou ter outro ataque, maldito o dia em que nasci, o anzol de aço
está fincado na sua carne ou na minha?, a canoa dispara, desse jeito eu perco o
equilíbrio, parece que eu tenho um bolo de comida seca entalado na garganta, este suor o
Jó da Bíblia verteu muitas vezes nos seus padecimentos, ah, a nuca, o peito, o maxilar
endurecido, a cunhã me espera, peixe desgraçado de quatro arrobas, você é um monstro
das profundezas, vá a gente adivinhar os caprichos de uma mulher, você me põe de
joelhos no fundo da canoa, eu um vassalo do Rei dos Surubins, você existe mesmo ou é
lenda?, tanto vento na baía e meus pulmões ardem, a caixa dos peitos vai estourar, adeus
Rei Meu Senhor dos Surubins…fuja com o anzol na boca…vá viver no rio o resto dos seus
dias…eu

Hélio Pólvora is a well-known Brazilian storyteller. He lives in
Salvador, Bahia, and he is webmaster of a short stories journal, the Jornal de Contos,
which you can access in http://www.e-net.com.br/contos.
Pólvora is also book reviewer, translator and author of about twenty books of short
stories and literary criticism. You can reach him at powder@bitsnet.com.br 

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