Blood, Deceit and the Brazilian Miracle


Blood, Deceit and the Brazilian Miracle

A new book reveals Brazil’s General-President Ernesto Geisel
talking in a taped conversation
about the opposition: "This
business of killing is barbarity, but it has to be done". It also
shows the
inventor of the "milagre brasileiro," Finance Minister
Delfim Neto setting up one of Brazil’s largest
PR operations ever.

by:

Alberto Dines

 

It’s hell let loose in Pindorama (Brazil, for those in the know): a chapter of our recent history rewritten in all its
brutality, without the attenuation of academic blah-blah-blahs. The third installment of Elio Gaspari’s panoramic account of the
military regime, O Sacerdote e o Feiticeiro—A Ditadura Derrotada
(The Priest and the Witch Doctor—Dictatorship Defeated),
by Companhia das Letras, was spectacularly launched. According to newspaper excerpts, it is already being acclaimed as
a cornerstone in the reevaluation of the GG (Geisel-Golbery) era. More than that: it is a crushing portrait of Brazil.

The dialogue between a President at the brink of inauguration (Geisel) and his future Army Minister (Dale
Coutinho) about the elimination of dissidents is terrifying. Even taking into account that we lived under a dictatorship then, at the
height of the Cold War. Described by a fiction writer, it would be incredible; transcribed word by word from recordings, it is shattering.

The transcription knocks down the myth of the `cordial Brazilian’, catches the violence imbedded in the bowels of
our society and flings open the insensitivity that thickens the soul of those who rise to power and sit down on it.

`’This business of killing is barbarity, but it has to be done". Words spoken by drug lords Elias Maluco, Fernando
Beira-Mar, or a note from the criminal organization PCC (Capital’s First Command) ? Actually, a statement by Ernesto
Geisel, the austere, superior and unassailable military man who, in another conversation, this time with his security chief, added
this to his reasoning: "…That’s what needs to be done. No traces left behind…"

Nevertheless, it was the Geisel-Golbery duo who did face the paranoia of the hardliners and accomplished the "slow,
gradual and safe" distensão (distension) plan which materialized, 10 years later, into the indirect election of Tancredo Neves.

The contrast is now even more disturbing because the "business of killing" ended up serving the double purpose of
ousting some of the killers and exalting an `anything-goes’ stance, which will only be exorcized and accursed when it is duly
investigated and scrutinized.

The reference to the dead is tragic, while the mention to some who are still alive—alive and cunning—is remarkable.
The excerpt published by the daily Globo newspaper (November 5, pp. 9-13) reveals the re-emergence of the former
economic czar of the military regime, this time with due prominence and, finally, no retouching.

For the first time in his 40 years of public life, Antônio Delfim Netto appears in full—photographed and x-rayed.
The results are deplorable. Blood was running in the basements and the man in charge of the dough pocketed it all. As the
inventor of the statistical fraud entitled "Milagre Brasileiro" (Brazilian Miracle), Delfim set up one of the largest and most dire
public relations operations anyone has ever heard of.

The press did not contest it because the press was comfortably gagged by their own auto-censorship and mainly
because the press worked at his pleasure. Every week, Delfim dined with the media and had the media for dinner. One of the
biggest frauds of our economic history was converted, in exchange for pure gold, into
a best-seller which, besides other decoys, manufactured an
"immortal" (lifetime member) of the Brazilian Academy of Letters.

Delfim is already making ironic statements around about "palace intrigues", but the rottenness exposed on
Wednesday by Globo is serious. Mario David Andreazza, his accomplice, as well as Geisel himself, have made it vocal. And the
secretary of the Presidency, Heitor Ferreira de Aquino, translated it well in his laconic annotation: "See Delfim Netto’s tax returns".

We don’t know if the powerful finance minister’s tax returns were looked into, but it is evident now that someone
has to tell the story of the true herança
maldita (cursed inheritance), which has allowed no finance minister in Brazil to
sleep well for the past 30 years.

And why is it that Delfim Netto remains unscathed, distilling his venoms in political columns—he does write for two
dailies and one weekly—,flattered by the media? It’s simple: because Delfim Netto pushed the media into the hole where it is
now, by leading it into believing in the miracle it announced.

He encouraged the media to accumulate debt in dollars, invited it to diversify in a preposterous way (always
benefiting businessmen, never businesses) and instigated it into getting in trouble with all kinds of pharaonic projects. The result is
what we see: bankrupt newspapers, dimmed glories, hat in hand at the door of BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econônico e Social—National Bank for Economic and Social Development). And mouths shut.

Delfim is untouchable, which is one of the biggest mysteries of our political scenario. The left loves him because,
unlike José Serra who couldn’t get on a megaphone, he had all the skylights and microphones he wanted at his disposal to
point at all the mistakes made during the two terms of President Fernando Henrique Cardoso. He made the most of it. The
right raves him, he got the most votes of any congressman in the PP and he is a former brain of Maluf and now his
successor—in all subjects.

The journalist has two volumes to go to complete this saga with no heroes. A cruel meeting with the dirty
war—again. A picture of a country that was wronged and lost itself.


Originally published in Jornal do Brasil –
www.jb.com.br

 

Alberto Dines, the author, is a journalist, founder and researcher at LABJOR—Laboratório de Estudos
Avançados em Jornalismo (Laboratory for Advanced Studies in Journalism) at UNICAMP (University of Campinas) and
editor of the Observatório da
Imprensa. He also writes a column on cultural issues for the Rio daily
Jornal do Brasil. You can reach him by email at
obsimp@ig.com.br


Translated by Tereza Braga. Braga is a freelance Portuguese translator and interpreter based in Dallas. She is an
accredited member of the American Translators Association. Contact:
terezab@sbcglobal.net
 

Excerpts from A Ditadura Derrotada –
Volume 3", by Elio Gaspari

1. Do
capítulo "Moita, é o Alemão"

Aos 65 anos, [Geisel] era um homem sem prazeres
nem sonhos, regido por hábitos e obrigações. Pelo porte marcial, parecia maior
que seu 1,77 m de altura. Os cabelos brancos faziam-no mais velho, um estrabismo
dava aspecto inquietante ao seu olhar, e o costume de elevar repentinamente a
voz tornava-o um interlocutor desagradável. Atencioso no trato, resguardava-se
de manifestações sentimentais. Precedia quaisquer ordens, até em pequenos
bilhetes, de um eterno "peço". Era temido por suas explosões de ira, quando na
realidade elas refletiam uma das poucas exibições emocionais que se permitia.
Como ele mesmo explicava: "Eu só fico brabo com as pessoas com quem tenho
intimidade".

Em sua vida misturavam-se os valores dos colonos
alemães do Rio Grande do Sul e as ansiedades daquela geração de militares
brasileiros que a Revolução de 1930 denominou "tenentes". Às influências do meio
somara necessidades e sofrimento. Nada lhe fora fácil. Poucos eram os seus
afetos, todos enclausurados numa circunspecção que raramente rompia o círculo
familiar. Detestava efemérides, fosse o próprio aniversário ou o Natal. Duvidava
não apenas de si, mas de todo o gênero humano: "É muita pretensão do homem
inventar que Deus o criou à sua imagem e semelhança. Será possível que Deus seja
tão ruim assim?".

Era um desconhecido para a maioria dos
brasileiros. Mantinha-se afastado da roda social dos burocratas e do convívio
com os colegas de farda. Vivia trancado na Petrobrás. Saía para almoçar em casa,
sentava-se de pijama à mesa, dormia quinze minutos e regressava à sua sala de
trabalho pontualmente às catorze horas. Andava na praia antes do sol forte,
passava os fins de semana em Teresópolis, e contavam-se nos dedos as famílias
que freqüentava. Evitava receber o tratamento de "você" e não beijava mulheres
no rosto. Havia quase vinte anos jogava biriba com o mesmo casal de amigos.
Morava com a mulher e a filha num apartamento de três quartos e sala, em
edifício sem elevador, no Leblon. Tinha economias suficientes para satisfazer a
mulher, que se encantara com um lançamento imobiliário próximo, com vista para o
mar, mas não abria a mão (por hábito) nem a guarda (por cautela): "Lucy, eu não
vou comprar esse apartamento. Estou indo para a Petrobrás, e se eu comprar esse
apartamento, vão logo dizer que estou roubando".

2. Do capítulo "Uma dor que não acaba"

Na tarde de 28 de março de 1957 o coronel Ernesto
Geisel completara um ano de comando em Quitaúna. Havia uma pequena comemoração
no quartel e até um jogo de basquete. Seu filho Orlando ia para a quadra. Era
magro, tinha dezesseis anos, 1,86 m, óculos de fundo de garrafa e tradição de
bom aluno. "Fui o primeiro aluno", escrevia a um amigo, "mas isto é quase uma
obrigação para mim, porque todos os outros alunos trabalham e não têm tempo para
estudar." Decidira formar-se em engenharia eletrônica no Instituto Tecnológico
de Aeronáutica – o ITA – e deveria fazer vestibular no ano seguinte. Comprara
pão para a casa, deixara a irmã estudando desenho e montara na bicicleta. Viram-no
com um garoto na garupa, a caminho do quartel. Ao atravessar a linha do trem, o
jovem Orlando Geisel Sobrinho foi apanhado por uma composição e, ferido na
cabeça, morreu no leito da ferrovia. Ninguém testemunhou o acidente. Um oficial
reconheceu o corpo e avisou o coronel Geisel. Ele viu o filho, foi para casa e
informou a família. Em poucos meses seus cabelos louros ficaram completamente
brancos. De volta ao Rio, quando a mulher colocou uma fotografia de Orlandinho
num porta-retratos de prata, pediu-lhe que a tirasse. Se via o filho nos álbuns
da família, virava rapidamente a página. Passaram-se dez anos até que voltasse a
pronunciar o nome dele. O bloqueio erguido em torno da tragédia foi tão grande
que por muitos anos a família evitava mencionar o nome de Orlando na presença do
pai.

A morte do filho alterou a noção que Ernesto
Geisel tinha da própria existência. Trouxe-lhe um sofrimento que nenhum sucesso
haveria de eliminar. A educação austera, a disciplina da caserna e seu
temperamento fizeram-no um retraído, mas a desgraça abateu-o a ponto de ele
dizer, trinta anos depois, que "ao longo de minha vida eu fui um infeliz". A um
amigo que passou por experiência semelhante, confessou: "É uma dor que não acaba".
Nunca fora um lúdico, mas em 1957 perdeu até a capacidade de esperar que a vida
lhe desse alegrias. Os dias festivos transformaram-se em jornadas de sofrimento,
queria que se esquecesse o Natal, "porque minha família não está completa". "Ele
se ensimesmou ainda mais", conta Amália Lucy, a filha. "Antes da morte do
Orlandinho ele já era uma pessoa fechada, mas se permitia alguma vida social.
Depois, encaramujou-se", lembra seu amigo Humberto Barreto. Geisel não buscou
conforto na religião, nas reminiscências ou nas mudanças bruscas de
comportamento típicas das compensações emocionais. Trancou-se, nunca mais falou
do assunto e, sempre que lhe foi possível, passou o dia 28 de março na companhia
da mulher.

3. Do capítulo "Criptocomunista"

Quando garoto, Golbery do Couto e Silva
presenciara diversas experiências na sala da casa de seu pai, na cidade de Rio
Grande, o maior porto de mar entre Santos e Buenos Aires. Jacintho do Couto e
Silva Junior herdara razoável fortuna, tinha bigodes pontudos, bons cavalos,
mulheres e vinhos. Galã de grupo de teatro amador, reunia amigos em casa para
reproduzir as experiências do físico inglês William Crookes, da Sociedade para a
Pesquisa Psíquica. Era comum que fizessem transportes, mas, apesar das
tentativas, nunca conseguiram uma levitação.

O general completara sessenta anos em 1971. Era o
principal conselheiro político de Geisel. Quem o visse em 1967 seria capaz de
julgar mais fácil o exercício de levitação de Jacintho do que a ressurreição
política de seu filho. Do SNI Golbery passara ao Tribunal de Contas e dele
escapara em 1968. Tornara-se presidente da Dow Química, braço brasileiro da
multinacional americana. Ganhava cerca de 10 mil dólares mensais. Nunca vira
tanto dinheiro na vida. Seu escritório, na avenida Rio Branco, ficava a dez
minutos da sede da Petrobrás. Tivera três anos de notoriedade no governo
Castello, mas poucas eram as pessoas que o reconheciam na rua. Pouco falava de
si, muito menos do pai ou da família. Raramente saía de casa e quase nunca ia à
casa dos outros. Tinha algo de misterioso, mas também gostava de se mostrar
enigmático. Brincava com suas crises de labirintite: "Labirinto é a minha
especialidade". Depois de quase meio século de convivência, cumplicidade e
admiração, Geisel confessaria a um amigo: "Eu sempre fico com a impressão de que
o Golbery não me contou tudo".

Golbery dificilmente saía de casa porque sua
mulher, Esmeralda, sofria alucinantes crises psicóticas. Mesmo nos períodos de
normalidade – cercada por amas, pais-de-santo e bichos – dava-se a
constrangedores acessos de irascibilidade, nos quais tratava o marido com dureza.
Nos 52 anos que viveu nesse casamento Golbery jamais menosprezou a mulher. Não
se queixava dela, assim como não a contrariava diante de estranhos. Evitava
deixá-la sozinha, tratava-a com carinho, referia-se a ela como "a madame".
Gostava de contar casos em que a intuição e a lealdade de Esmeralda a levaram a
prever (e acertar) combinações políticas que ele supunha impossíveis. Quando
necessário, mencionava que sua mulher tinha "um problema psiquiátrico".

Leitor obsessivo, formara uma biblioteca de 10
mil volumes, entulhando sua casa em Jacarepaguá, na Zona Oeste do Rio de
Janeiro. Reproduções de quadros dos mestres europeus ocupavam as paredes que
escaparam às estantes. Seus prazeres d’alma eram a leitura e a conversa. Não ia
ao cinema e amealhara cultura teatral lendo peças. Era um erudito marcado pelo
autodidatismo. Conhecia de memória a estrutura pictórica da Transfiguração, de
Rafael, mas encantava-se com a figura de um menino em êxtase que, além de
espalhafatosa, nem de Rafael é. Faltava-lhe o apuro do gosto. Vestia-se
descuidadamente e não se interessava por comida. Não era comum que bebesse, mas
bebia mal, tanto por ser capaz de servir-se de uísque às dez da manhã, como por
enrolar a voz na quinta dose.

Adorava excessos: cristais venezianos com formas
de passarinhos, porcelana francesa com cenas campestres ou o poema "Se", de
Rudyard Kipling. Não se pode chamá-lo de barroco, era exagerado mesmo.
Escrevendo, era capaz de cometer uma frase de 24 linhas, com 268 palavras
escoradas em dezessete vírgulas. Num exemplo pouco complicado: "É a alma
faustiana do homem moderno que reponta, com todas as suas inquietudes, no
claro-escuro de um Rembrandt, o poeta supremo da luz, como se afirma ademais na
trágica ironia irreverente e acusadora de um Daumier ou de um Goya, para
culminar na desordenada exuberância do colorido estonteante e semilouco de um
van Gogh".

Tudo isso atrás daquela figura discreta, quase
sempre metida em ternos cinza, com óculos de aro fino, cabelo cortado rente.
Seus hábitos vocabulares eram comuns. Traía no sotaque a idade e a origem gaúcha.
Dizia "cousas" em vez de "coisas". Qualquer semelhança com seu mito misantrópico
era mera coincidência. Havia algo estudado em sua lendária frieza. Escondia uma
propensão romântica. Tinha ódios incontornáveis, como o que devotou a Carlos
Lacerda depois de 1966 ("Não falo com esse sujeito, nunca"), e amizades
irredutíveis. Em nome da que o uniu a Heitor Ferreira, ameaçou morrer afastado
de Geisel. Esse personagem que foi ao mesmo tempo ícone e patuá para a ditadura
militar, tinha um traço curioso, atrevido, quase moleque. "Eu não estou ligado a
nada, nunca. É uma característica minha, não sei dizer se é virtude ou defeito."

4. Do capítulo "Primeiras encrencas"

Às oito da noite, depois da saudação de Geisel, e
antes da novela O Semideus, o Jornal Nacional divulgou os fatos do dia. Além do
resultado da eleição, noticiou que havia pouco o ministro Mário Andreazza, a
bordo de um jipe, atravessara a ponte Rio-Niterói, ainda inacabada. Quanto ao
discurso de Ulysses, uma só informação: tinha onze páginas. Do que havia nelas,
nada. O anticandidato anunciara que o MDB "sairá deste recinto nem vencido muito
menos convencido, pois haverá esperança para a liberdade enquanto restar um
homem sobre a face da terra". A poucos quilômetros do Congresso, uma tropa do
Exército estivera de prontidão. Eram duas companhias de infantaria preparadas
para dissolver a reunião do Colégio Eleitoral caso houvesse algum imprevisto.

Assim como sucedera na convenção da Arena,
Golbery redigira o projeto do discurso de Geisel. E assim como sucedera três
meses antes, deu-se um eloqüente diálogo entre seu rascunho e a versão final.
Golbery escreveu o texto no verso de quatro formulários de consulta ao serviço
de pesquisas da Enciclopédia Britânica, ao qual pedira informações sobre arte
pop, Botticelli e Chagall.

Com a formalidade dos discursos de posse, queria
que Geisel prometesse o seguinte: "A coibição enérgica de toda violência ilegal,
partida de onde ou de quem partir".

Geisel argumentou: "Olha aqui, você tem um
negócio, uma coisa aqui, que não pode se referir agora. Quer ver? Isso é uma das
grandes verdades […]. Isso é verdade, e vamos ver se fazemos, mas você não
pode dizer".

Heitor Ferreira, diante da mesma argumentação,
ponderara: "Tem um alerta bom, que é: não venham querer criticar o senhor por
qualquer coisa que façam por aí".

"Não é nessa hora que eu vou começar a brigar.
Não posso pegar essa guerra. Não devo. O negócio do Golbery está todo certo,
agora, é discutível a oportunidade", foi a resposta de Geisel.

Noutro trecho, Golbery escrevera: "[…] confiar
num futuro próximo de grandeza, paz e justiça social que assegure, afinal, em
nossa terra, clima salutar à plena expansão da potencialidade humana de cada
cidadão brasileiro, sem privilégios indevidos, sem constrangimentos arbitrários".

Geisel não quis: "Pois é. Eu não vou falar nisso.
Vão me cobrar. E depois eu vou reconhecer, agora, que há constrangimentos
arbitrários? Há, mas não sou eu que devo dizer isso".

Golbery voltou com o parágrafo que preparara
meses antes, para a fala da convenção: "Governo aberto, almejo assim, venha a
ser o meu, no sentido de abrir e manter, arejados sempre, múltiplos canais de
comunicação com as elites políticas e técnicas, a intelligentzia sempre
trepidante das mais nobres insatisfações, a mocidade incontida embora, em seus
arroubos de idealismo, por vezes transbordantes, todas as minorias
autenticamente representativas e responsáveis do país e mesmo, partindo do
rincão mais remoto, a voz individual de qualquer cidadão ferido em seus direitos
ou clamando por justiça".

Geisel pescou o "cidadão ferido": "Há uma
referência velada às torturas. Eu não posso dizer isso, não é? Aí é que está,
então o sujeito não pode dizer o que ele realmente quer dizer. O que que ele vai
dizer? Vai embromar? Não é? É difícil".

O trecho se transformou no seguinte: "Entendo
mesmo que das maiores qualidades de um governante é saber dizer ‘não’ a
proposições que lhe pareçam intempestivas ou que, em justa análise, se lhe
afigurem ilegítimas. Dever não menor será, por outro lado, o de estar aberto a
quaisquer pleitos, sugestões ou críticas construtivas, todas merecedoras de
acolhida, para exame imparcial e sereno da verdade que contenham".

Golbery encaixou a mudança: "Graças a Deus está
conservado aquele negócio de dizer não".

5. Do capítulo "A grande encrenca"

No segundo semestre de 1973 o economista Paul
Samuelson, do Massachusetts Institute of Technology, publicara a nona edição do
clássico Economics, o livro-texto mais vendido do mundo sobre o assunto. Obra
brilhante na sua elegante simplicidade, fora fator decisivo para que o autor se
tornasse o primeiro americano a ganhar o Prêmio Nobel de Economia.

Na página 870, oferecia uma reflexão política:

"Fascismo:

É mais fácil caracterizá-lo política do que
economicamente. Seja na Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini, na Espanha
de Franco, em Portugal de Salazar, na Argentina de Perón ou nas juntas da Grécia
e do Brasil, o fascismo foi habitualmente identificado por ditaduras pessoais,
partido único e pela supressão das liberdades públicas. […] O indivíduo é
secundário diante do Estado. […]

Quando uma economia populista vai mal, com
inflação e desemprego, surge o desejo de que os fascistas assumam o poder, "restaurando
a ordem e promovendo o desenvolvimento econômico"? Arre, quase sempre a resposta
é: sim.

Mais entristecedor é testemunhar o sucesso
econômico ocasional de tais regimes ditatoriais – coisa de curto prazo. Assim,
nos anos 70 o regime militar brasileiro pode ter batido duro nos professores,
nos intelectuais e na imprensa livre. Mas como as pessoas diziam no tempo de
Mussolini: "Pelo menos os trens andam na hora". Quando se olha para o Anuário
estatístico da ONU, verifica-se que nos últimos anos o Brasil foi um verdadeiro
Japão na América Latina, com taxas médias anuais de 10% de crescimento do PNB.

A história mostra que é raro os despotismos
benevolentes persistirem na benevolência, e quase nunca conseguem manter-se
eficientes. […] Na vida real, o fascismo é incapaz de realizar até mesmo seu
próprio projeto."

Desde 1952 Economics era publicado no Brasil pela
editora Agir, de propriedade de Cândido Guinle de Paula Machado, amigo de
Golbery do tempo do IPÊS e do SNI. Vendera 100 mil exemplares, e havia pouco o
Ministério da Educação co-patrocinara a sétima edição. A Agir informou à editora
americana de Samuelson que considerava as observações do professor "preconceituosas"
e "ofensivas". Não havia jogo. Cortar não seria suficiente. Ou ele reescrevia o
texto, ou a edição seria recusada. A Agir não a publicaria.

Noutra trincheira, Cândido Guinle mobilizou sua
academia. O ex-ministro da Fazenda Eugênio Gudin escreveu a Samuelson: "Nós
temos um Congresso; os juízes são independentes e as restrições às liberdades
que se deram de 1967 a 1969 são agora coisa do passado".

Guinle levou a questão a Golbery, informando-o de
que já haviam pedido ao professor Mario Henrique Simonsen, da Fundação Getulio
Vargas, que reforçasse a gestão de Gudin.

Golbery contou a Geisel: "Tem um trecho horroroso
contra o Brasil. […] O perigo é o livro, a significação […]. Toda
universidade tem, todo mundo estuda por aquele livro. Eles estão querendo é não
fazer a edição, mas tirar o trecho também não resolve. Eles querem que o homem
reconsidere".

Decidiu ampliar a ofensiva, pedindo ao economista
Roberto Campos, ministro do Planejamento no governo Castello Branco, mais
pressão sobre Samuelson. Não precisava. O Prêmio Nobel capitulara diante da
ameaça da Agir, antes de receber a carta de Gudin. […]

Sumira a frase premonitória: "Mais entristecedor
é testemunhar o sucesso econômico ocasional de tais regimes ditatoriais – coisa
de curto prazo".

Cândido Guinle festejou a vitória num bilhete a
Golbery pedindo-lhe que desse um telefonema a Gudin, "pois ele ficaria
satisfeito". Ficou tão satisfeito que, dias depois, almoçou com o general e
recomendou-lhe nomes para o Ministério da Fazenda e para a presidência do Banco
Central.

6. Do capítulo "A grande encrenca"

O desmanche de Delfim teve no general João
Figueiredo um precursor. Haviam sido colegas no governo de São Paulo, quando um
cuidava da Fazenda e o outro da Força Pública. O chefe do Gabinete Militar
ouvia-lhe o telefone. Acusava-o de manipular concorrências para beneficiar a
empreiteira Camargo Corrêa. Combatia-o sobretudo pela obstinação com que se
fixara na meta dos 12% de inflação para 1973. Afastar-se do Gordo tornou-se meio
eficaz de manter-se ancorado no regime. Mário Andreazza, ministro dos
Transportes, parceiro de Delfim nos projetos do "Brasil Grande", confessou a
Geisel que conseguira tantos recursos porque "conheço os podres do Gordo". O
plutocrata Augusto Trajano de Azevedo Antunes assegurava a Golbery que o
ministro da Fazenda trapaceava nos negócios com carne, protegendo um frigorífico.
Nenhum deles atacou Delfim em público, nem enquanto esteve no governo, nem
depois. Também não ofereceram prova de suas acusações ou se dispuseram a
documentá-las.

Era Golbery quem ia fundo na sua crítica ao
condestável do Milagre: "O Gordo é um ditador. Não tem escrúpulo em usar o poder.
O Gordo faz misérias. Pega o sujeito, põe na rua da amargura. Ele não tem ilusão,
para o bem ou para o mal, para proteger ou para massacrar. Se ele amanhã fosse
presidente da República, vamos ver o que seria […]. Para ele não ser, ele não
pode ser governador de São Paulo […] paulista e civil e ditador".

No andor, Delfim e o regime orgulhavam-se de ter
baixado a inflação para 15,5%. No desmanche, o professor Eugênio Gudin, nave-mãe
do conservadorismo econômico, dizia a Golbery que o ministro manipulava os
preços das cestas de alimentos para o cálculo do custo de vida. Quem fazia as
contas era a Fundação Getulio Vargas, e quem tinha assento no seu Conselho era
Gudin, não Delfim, mas isso lhe parecia secundário: "Nós não podemos resistir a
certas coisas. O homem é diabólico. O homem é diabólico. Nós sabemos que ele
sabe exatamente quais são os gêneros que entram na cesta. Ele chama os donos dos
supermercados e diz: ‘Esses gêneros os senhores vão vender pela tabela ou abaixo
da tabela. Os outros, vocês vendam por fora’". O ministro explicaria de outra
maneira. Se o arroz estava caro no Rio (cidade cuaw6kx preços determinavam o
índice) e barato em Minas, ele providenciava a transferência de estoques
mineiros para o comércio carioca. Nas estatísticas da Fundação, em dezembro a
carne de primeira estava a Cr$ 6,60, mas custava Cr$ 14,00 nos açougues do Rio
ou Cr$ 15,00 nos de São Bernardo do Campo. Numa indicação da extensão do êxito
da política de desmobilização da sociedade, uma comandita de hierarcas e barões
da academia oficialista fraudou o índice econômico de maior relevância social do
país com a naturalidade de quem atrasa um relógio. (A FGV corrigiu o embuste em
1977, transformando os 15,5% de 73 em 20,5%.) A Agência Rio do SNI calculara o
aumento do custo de vida na cidade em 32%, e seu chefe fizera saber a Golbery
que confrontara Delfim com essa estatística.

Orlando Geisel fora afastado numa conversa cruel
porém amiga. O Gordo foi para a máquina de moer carne. Reclamando dos subsídios
que a manutenção do Milagre cobrava à economia, Geisel fechara o caso: "Ele está
frito comigo". Mantê-lo na Fazenda, nem pensar. Agricultura? "Só se for para
jejuar", respondia Golbery. Depois de uma de suas longas conversas com Geisel,
ele recomendou a Heitor Ferreira: "Dossiê do Delfim Netto no SNI. Selecionar
antes". Heitor anotou no cartapácio de Temas para Ação: "Ver declaração de
rendimentos de Delfim Netto".

O petróleo azedara o Milagre. Seu mago virava
vinagre.

7. Do capítulo "Esse troço de matar"

Coutinho tinha o recado do porão: "E eu que fui
para São Paulo logo em 69, o que eu vi naquela época para hoje… Ah, o negócio
melhorou muito. Agora, melhorou, aqui entre nós, foi quando nós começamos a
matar. Começamos a matar".

Geisel: "Porque antigamente você prendia o
sujeito e o sujeito ia lá para fora. […] Ó Coutinho, esse troço de matar é uma
barbaridade, mas eu acho que tem que ser".

Dale Coutinho contou sua experiência no IV
Exército: "Eu fui obrigado a tratar esse problema lá e tive que matar. Tive que
matar. Outro dia ainda tive uma satisfação que, no último relatório do CIE, a
origem, o fio, o início da meada dessa guerrilha lá em Xambioá começou num
estouro que nós fizemos em 72 lá em Fortaleza. Foi dali que um falou que tinha
guerrilheiros no norte de Goiás, não sei o quê".

"GEISEL: Sabe que agora pegaram o tal líder e
liquidaram com ele. Não sei qual é o nome dele.

COUTINHO: É. O Chicão. Luizão. [Referia-se a
Osvaldão, o guerrilheiro Osvaldo Orlando da Costa, morto semanas antes.

GEISEL: Bom, o que eu queria assinalar é isso.
Nós vamos ter que continuar ano que vem. Nós não podemos largar essa guerra.
Infelizmente nós vamos ter que continuar. É claro que vamos ter que estudar
[…] processo, vamos ter que repensar…"

8. Do capítulo "A costura da púrpura"

O general [Golbery] sabia se mover em silêncio. É
por isso que um mistério envolve o seu caminho naquela tarde. Ele saiu do Parque
Guinle e ia para o largo da Misericórdia. Estava sem automóvel. D. Paulo ia para
o aeroporto Santos Dumont, e Candido Mendes deu carona aos dois. Em 1973, como
hoje, quem sai de Laranjeiras com um carona para o Santos Dumont e outro para a
Misericórdia, passa primeiro pelo aeroporto. Candido Mendes queria conversar a
sós com o cardeal, pois um almoço daqueles não era coisa comum. Poderia
desembarcá-lo, deixar Golbery quinhentos metros adiante, e voltar ao Santos
Dumont. Essa manobra impediria que a imprensa – sempre de plantão na entrada do
edifício do Ministério da Agricultura – visse o cardeal e o general juntos.
Golbery também poderia ter saltado no meio do percurso, buscando condução
própria. Era comum vê-lo tomando táxis.

Passava pouco das três da tarde. Candido Mendes
parou diante da pequena porta dos fundos do prédio, por onde entravam os
notáveis da República. Aos repórteres surpreendidos pela tripulação daquele
Opala azul, Golbery disse que se encontrara com d. Paulo mas não falaria da
conversa porque era seu direito ter relações pessoais. Segundo o cardeal, ele
lhe disse no automóvel que se não houvesse jornalistas na rua, iriam ao gabinete
de Geisel. D. Paulo estranhou, mas o general insistiu. Havia jornalistas, e
Golbery subiu sozinho. Passados 21 anos, Candido Mendes não se recordava dessa
proposta. É indiscutível que o general não tomou cuidado algum para manter em
segredo o encontro com d. Paulo Evaristo. É quase certo que deliberadamente o
tornou público. Quando os repórteres contaram ao coronel Moraes Rego que viram o
general e o cardeal no mesmo carro, ele achou que estavam confundindo uma viagem
de Golbery a São Paulo com um encontro de Golbery com d. Paulo. Depois o coronel
confidenciou a Heitor Ferreira que o general fizera um foul, mas o discípulo do
Satânico Dr. Go tinha dúvidas: "É mesmo, a menos que ele esteja com alguma
sacanagem".

Durante o resto da tarde o general conversou com
Geisel, narrou-lhe a conversa, mas não se referiu à cena do desembarque. O
futuro presidente soube dela pelos jornais do dia seguinte e não gostou.
Desabafou com Heitor Ferreira e Moraes Rego em dois tempos.

No primeiro:

"É muito cedo para rasgar esse troço. Os nossos
inimigos estão aí, dentro do SNI, dentro do CIE, essa merda. E nós estamos
provocando os caras. […] Ele tinha que sair do almoço e ir embora e dizer: "Olha,
essa conversa é confidencial". Como os outros. O Arns é marcado demais do outro
lado. O pessoal já não gosta do Golbery, já marca o Golbery. […]"

No segundo:

"Daqui a pouco vem pressão do Exército, que o
Exército não se conforma, porque o Exército não aceita. Daqui a pouco, quando
menos se espera, vem essa pressão em cima da gente. E aí? Como é? Ah, porque
estão fazendo a abertura com a Igreja, o Exército não aceita… O Exército não
aceita, porque o Arns… E aí, que que eu vou fazer, não é? Eu não posso mandar
o Exército à merda. Então vou eu embora. Então vocês tomem conta, e até logo.
Vou acabar fazendo isso. O pessoal não se dá conta do que é o Exército. A maior
excrescência."

Quando Heitor lhe narrou a tempestade, Golbery
recuou: "Foi muito ruim, e eu pensei que passasse despercebido".

9. Do capítulo "O porão intocado"

Em 1974 chegou ao apogeu a política de extermínio
de presos políticos. As versões oficiais já não produziam mortos em tiroteios,
fugas ou suicídios farsescos nas cidades. Geisel sabia dessa política. Em
janeiro tivera duas conversas com veteranos da luta contra o terrorismo. Uma,
com o general Dale Coutinho, quando o convidou para o Ministério do Exército.
Dias depois, numa prosa fiada com o chefe de sua segurança, tenente-coronel
Germano Arnoldi Pedrozo, Geisel soube que um grupo de pessoas que viera do Chile
e passara pela Argentina, havia sido capturado no Paraná. Pedrozo fora
ajudante-de-ordens do marechal Castello Branco, passara pelo CIE e merecia do
general não só a confiança, mas também estima.

"Pegaram alguns?", perguntou Geisel.

"Pegamos. Pegamos. Foram pegos quatro argentinos
e três chilenos", respondeu Pedrozo.

"E não liquidaram, não?"

"Ah, já, há muito tempo. É o problema, não é? Tem
elemento que não adianta deixar vivo, aprontando. Infelizmente, é o tipo da
guerra suja em que, se não se lutar com as mesmas armas deles, se perde. Eles
não têm o mínimo escrúpulo."

"É, o que tem que fazer é que tem que nessa hora
agir com muita inteligência, para não ficar vestígio nessa coisa", falou Geisel.

É improvável que Geisel só tenha tratado da
matança nas duas conversas registradas, com Pedrozo e Dale Coutinho. Não se
conhecem as conversas entre ele e seu irmão Orlando. Sabe-se que no início do
governo convocou uma reunião em que o general Milton Tavares de Souza, chefe do
CIE, contou, no mínimo, o que a tropa vinha fazendo no Araguaia. Ao defender a
permanência de Miltinho na chefia do CIE, é certo que Geisel conhecia, apoiava e
desejava a continuação da política de extermínio.

10. Do capítulo "É isso, e pronto"

O MDB liderava as apurações em dezoito estados. A
Arena só estava garantida no Maranhão, onde não tivera adversário, e na Bahia.
Poderia ganhar no Piauí, em Alagoas e no Acre. Mas para quem estava perdendo até
em Sergipe, tudo era possível. O venerando senador Leandro Maciel, com 72 anos,
vencedor de seis eleições parlamentares (a primeira em 1930), perdia de 7 X 4
para Gilvan Rocha, um ginecologista que fazia política mas nunca disputara
eleição.

Terminado o noticiário, Geisel mostrou-se
preocupado com os resultados para a Câmara. Achava que o MDB podia capturar a
maioria. A preocupação era terrível. Mesmo se o MDB tomasse as 21 cadeiras que
disputava no Senado (onde se renovava apenas o terço da Casa), a Arena
continuaria majoritária por 41 X 26. Se o resultado da eleição majoritária se
replicasse na votação proporcional, a oposição controlaria a Câmara, pois lá
estavam em jogo todas as cadeiras. O general levantou-se e saiu para caminhar no
jardim plano e escuro que circunda a casa. Andou só por algum tempo. Quando lhe
disseram que a Arena haveria de ter a maioria da Câmara, respondeu: "Vamos ter
por quê? O que nos assegura? Acho bem possível que não tenhamos. […] Eleição é
isso mesmo. O povo vota livre e, normalmente, no contra. E nós temos que
respeitar. Pois não fizemos uma eleição? É isso, e pronto".

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