I Uno, sereno, e dono, após trinta anos de repartição, do meu destino, iria agora perder este governo, ligando-me seja a quem for? Desprendi-me do que me tolhia, em mim não há divisões, não reverei os colegas de trabalho. Conduzirei agora minha vida com a invenção de um maquinista que fizesse avançar sua locomotiva para fora dos trilhos. Nada de caminhos feitos: improvisar é a regra.
—Só uma coisa me preocupa. É não conseguir esquecer os problemas com o envidraçamento da Secretaria.
8 Dividida entre a esperança e o medo, enfim me decidi. Duas palavras gastaram minha vida: amanhã e depois. Sim, é a última vez que nos falamos, não suporto mais suas prorrogações. Quanto ao enxoval, continuará nas malas, nas gavetas, até que eu morra. Como o lamentarei, se mais inútil me foi a juventude?
—Não sei se já lhe disse tudo sobre os vidros. Muitos estavam partidos e a maioria apresentava manchas de umidade. Umas redondas, outras oblongas, ou em forma de estrelas. Algumas bem grandes, com quase dois palmos. Poucas janelas continuavam em ordem. Então o Chefe me incumbiu de estudar o assunto e tomar as providências que fossem necessárias. Um ardil para segurar-me: eu estava a poucos meses da aposentadoria.
—Que interesse podia ele ter nisso?
—Está no emprego há mais de trinta e nove anos e detesta ver alguém aposentar-se no devido tempo. Aguarda a compulsória. Cada servidor que se deixa ficar é uma aprovação ao seu amor pelos autos e o livro de ponto. Não lhe dei esse prazer. No exato minuto em que recebi o Diário Oficial, escrevia esta palavra: "sessenta". Por coincidência é a minha idade.
8 Ouvem-no, um à sua esquerda, outro à direita, todos no sofá, seus mais comuns seguidores, os que melhor conheço: ele aos trinta e nove e ele aos vinte e oito anos, aquele tolerante, este colérico. Vestem-se os três como era de uso antes da última guerra.
—Faltava ainda a sílaba final. Deixei a palavra incompleta, vesti o paletó, dei as costas, saí. Não falei com ninguém, nunca mais voltarei àquele purgatório. Custou, mas por fim chegou o dia: sou um homem livre até o fim da vida.
I Livre quer dizer: sem compromisso. Ela aceitará nosso rompimento? Se casássemos, levaria para a nova casa todos os retratos que ornamentam a sala, registrando as modificações de seu rosto, a duração e o fim de suas ânsias. Como poderia viver em meio a essa profusão de olhos, penteados, sorrisos e bijuterias, eu que sou propenso à unidade, fazendo tudo para manter-me íntegro, dentro do presente, sem extraviar-me no passado e sem admitir que invasores de outro tempo me perturbem a rigorosa inteireza do que desejaria ser ou sou?
—Trinta longos anos de trabalho. Mereci o prêmio.
—Realmente.
—Trinta anos não são trinta dias!
—Bem sei.
(A atividade, entre os insetos, é limitada por mudanças alheias a eles próprios; o sono, em tão diverso e numeroso grupo, não exprime repouso. Como acrobatas que passassem a noite num trapézio ou num arame estendido a vinte metros do solo, assim dormem, atentos, na atitude que têm quando em vigília.)
—Que vai fazer agora do descanso? De sua liberdade?
—Muita coisa. O problema está em escolher.
8 É o velho quem responde. Os que o ladeiam olham-no de suas idades remotas. Ouço, no jovem, um ranger de dobradiças, de rolimãs sobre eixo não lubrificado. No outro, de trinta e nove anos, em algum impreciso recanto de seu corpo, uma roldana é acionada com insistência, pesos em forma de cubo vão e vêm no escuro. Diz o moço: "O mar está rugindo". A roldana interrompe os movimentos: "Continua avançando na Praia dos Milagres". Interfiro: "Onde, há um ano, havia residências, hoje só restam alicerces e alguns tijolos soltos!" Todos concordam: "É mesmo". Volta o silêncio e os três me contemplam, decerto sem ver-me, aflitos com o estorvo de suas almas de serragem, de colheres dobradas, de facas cegas, comportas e alçapões. Uma noite foram dez os que vieram; ocuparam o sofá, as seis cadeiras, o banco do piano, todos irados, numa agitada conversa a respeito de grades e portões. Infelizmente, são em geral esses os que me visitam. O de sessenta anos faz-me lembrar um zoológico onde todos os bichos estivessem mortos e mesmo assim visitados. Mas uma noite eu o vi aos dezessete anos. Encheu a sala de sons, contou a história da primeira mulher que se deitou com ele, ouviu-me. Há mais de quatro anos aguardo seu retorno. Desejaria revê-lo, ardoroso e sensível, talvez um pouco perverso, com seu rumor de címbalos e guizos.
—Nem sequer acabei de escrever "sessenta". Vesti o paletó e saí. Como quem vai tomar um copo de leite. Cheguei a deixar as gavetas abertas: não havia, na repartição, um só objeto meu. Gostaria de investigar até ao fim o caso das vidraças. Mas, pelo menos dessa vez, agi com decisão. Levantei-me, afastei a cadeira, fui embora. Quando atravessei o portão, eram exatamente nove horas e cinqüenta e dois minutos.
—É triste sair assim de um lugar.
—Não vejo por quê.
8 O jovem, à sua direita, levanta-se, fecha dentro de si todos os ferrolhos, bate as portas, cerra as fechaduras que estalam, oxidadas.
—Não consigo esquecer o problema das janelas. É interessante refletir sobre ele. Veja. O envidraçamento, todo em caixilhos de alumínio anodizado, deveria ser feito com lâminas de três milímetros. Entre elas poriam lã de vidro, misturada com uma resina própria. Mas as fibras de lã não apresentavam distribuição uniforme. Então, preferiu-se um par de lâminas chamadas Calorex-Atherrnane, separadas por um tecido de algodão, impregnado de melanina-formol. E que se fez para colocar as placs nos caixilhos? A massa de vidraceiro é um produto convencional, pouco eficaz. Embora o vidro fosse antitérmico, procedeu-se como se as variações de temperatura o afetassem: empregaram uma gaxeta elástica de neoprene. Este produto vem dando resultado ótimo em edifícios grandes, no estrangeiro. Pois bem. Não tardou muito, começaram a surgir, nos dez andares, as manchas de umidade. Levantando um pouco o neoprene via-se, nas canaletas, água acumulada. A distribuição espacial das manchas era irregular. Não se notava preferência por uma face qualquer da construção. Quanto aos vidros quebrados, quanto a estes, sim: havia preferência. Um ritmo. Que pista seguir para esclarecer o problema? Investigar aquilo fascinou-me. Em quase trinta anos, era a primeira tarefa mais ou menos viva que me chegava às mãos. Olhava osCalorex-Athermane como se fossem bichos, vítimas de alguma epidemia. Gatos ou cavalos de vidro. Sabe o quanto detestava o Chefe. Passei a odiá-lo na medida em que me sentia tentado a não aposentar-me, até que descobrisse a verdadeira razão daquelas manchas e das vidraças partidas.
8 Olho meus retratos nas paredes. O tempo rói e destrói a face das pessoas. Para gastar minha face, houve o tempo e esse homem. O tempo enrugou-me a fronte, ele escavou-me as olheiras; o tempo arrancou-me os dentes, ele entortou-me a boca; o tempo aguçou meu perfil, ele gravou-me este ar de quem recua; os dois juntos instilaram em minhas ocas profundezas a ferrugem e o bolor.
—Você fala, Mendonça, como se tivesse grande amor por gatos ou cavalos. Como se fosse capaz de dar um passo por qualquer coisa viva.
—Como não? Certas noites de calor, abro a janela do quarto e estendo-me na cama. Entram mariposas, às vezes sucede entrar algum besouro. Não os mato. Gosto de vê-los.
—Porque são feitos de arame, de mica, de aparas de cobre. E têm olhos de vidro. Após trinta anos de trabalho, você não teve em quem dar um abraço de despedida.
—E abraços por quê? Não eram meus amigos.
—Algum devia de ser.
—Nenhum era. Nenhum.
8 À sua esquerda, arfa outra vez a obscura roldana e a voz desse Mendonça grisaIho aprova com firmeza:
—Fez muito bem. Era assim que eu imaginava encerrar minha carreira, há vinte e um anos. Fez muito bem. Para que despedir-se daqueles inúteis?
(As moscas, em grande número, aparecem às vezes imobilizadas, como se estivessem mortas, envolvidas em fina e alvacenta poeira. Pequenos cogumelos, ao passo que devoram os tecidos dos insetos, semeiam os seus esporos mortais. O mínimo golpe de ar ergue-os e transporta-os para as moscas ainda não-contaminadas. Os cogumelos crescem, invadem-nas, roem seus tecidos, bebem com sede o líquido sangüíneo, multiplicam-se, destroem os órgãos todos. As moscas atacadas renunciam a voar. Deixam-se ficar numa parede, num lençol, numa poltrona, em cima de um arquivo. Em breve, do que foram, resta a casca, a vazia aparência, invadida por tênues filamentos.)
—Se, pelo menos, houvéssemos casado! Ou juntado, como fazem tantos.
—Não fale assim, Giselda.
—Podíamos ter filhos com mais de vinte anos.
—Você não ignora que o meu ordenado era pequeno. Depois, veio a morte do velho. Ia abandonar minha mãe?
—Não. Desde que todos os seus irmãos haviam casado, você devia fazer o sacrifício. Ela precisava tanto de alguém para atormentar! Só Deus sabe o quanto padeceu aquele pobre homem. Conversou mais de uma vez comigo. Dizia que como a mulher se chamava Maria José, queria ser ao mesmo tempo a Maria e o José. Não deixava de ter razão.
—É injusto que dissesse isso. Principalmente a uma estranha.
—Eu não era uma estranha. Quando me tocou pela primeira vez no assunto, você era meu noivo há mais de onze anos. E ganhava bem.
8 Novamente no sofá os três, sentados juntos. Rangem dentro deles as dobradiças, pesos, roldanas, ferrolhos, rolimãs. O de trinta e nove anos leva a mão direita à boca:
—Fui eu talvez que tive a culpa de tudo. De toda esta aridez. Não era tão tarde para mudar. Tinha economias, não? Podia haver abandonado o emprego, casado com você, organizado a fábrica de grades e portões. Entretanto, fiz o quê?
8 Escande o jovem, de cabeça baixa:
—Começou a riscar os famosos quadros. As obras de arte, os retângulos quadriculados com oitenta centímetros por quarenta. Três mil e duzentos quadrados: três mil e duzentos dias. Esta foi a sua contribuição. Ao fim de cada expediente, uma cruz seria desenhada em cima de um quadrado, três nas sextas-feiras, duas nas vésperas dos feriados. Para medir os dias que faltavam até à aposentadoria. A essa época, já restava em você muito pouco de mim.
—Tinha onze anos de serviço. Esta era a diferença. Num emprego para o qual você—não eu—entrou, à custa de pedidos e influências. Lembre-se bem disto.
—Não para passar a vida inteira. Não para passar mais de trinta anos. Cruzes num papel! Eu quis produzir artefatos de ferro, este era meu sonho. E você... Tudo isso me dá vontade de chorar. Fazer pequenas cruzes nos quadrados. Depois de algum tempo, aqueles anos pareciam um cemitério.
—Você fala como se alguém pudesse alegrar-se em ver morrerem assim os dias. Mas tudo era feito com cólera. Eu odiava aquilo tanto quanto você.
—De que servia essa cólera morta? Um preso é mais livre. Ele pensa num modo de escapar, mede a altura dos muros, a resistência das grades, procura ver se os guardas são venais. Não se limita a contar os dias da sentença. Vocês faziam cruzes nos quadrados. Só. Imaginavam ser diferentes dos outros. E talvez fossem, porém não em coisas importantes. Como todos eles, nunca tiveram coragem de ousar fosse o que fosse. Tudo girava em torno de proventos, gratificação, adicional, honorários, extraordinários, pró-labore, rendimentos, comissão, abono, vencimento, ordenado, remuneração, salário, recompensa em espécie, promoção, interstício e aposentadoria.
(Certos parasitas invadem os formigueiros, comem todas as larvas e nem os ovos escapam à sua fome. Degradam as colônias invadidas, segregando um mel que não nutre as formigas e embriaga-as. Estas, alheias a tudo, dedicam-se aos invasores. Outras se tornam escravas de formigas guerreiras. Servem às conquistadoras, alimentam-nas, desdobram-se em cuidados ante a postura de suas inimigas. Elas próprias, contudo, não se reproduzem.)
—Sua mãe procurava dar a impressão de mártir. De uma santa. Nunca vi alguém mais preocupado, neste mundo, em ter uma aparência angélica. Devia, para isto, cheirar melhor. Seus vestidos recendiam sempre a cachorro molhado.
—Não é verdade.
—Foi seu pai quem me disse. A comparação é dele. Nunca sabia nada, a ingênua. Tinha sempre a cabeça meio pendida, como a das imagens baratas, e as mãos cruzadas no regaço. Ignorava os escândalos mais notórios. Para fingir que não se ocupava dos assuntos alheios e ouvir mais uma vez, com novos pormenores, o que já sabia. Sempre admirando-se.
—Apesar dos pesares, era boa mulher e carinhosa comigo. Quando eu me deitava, ela trazia algodão e me punha nas orelhas, para as formigas não entrarem. Insistia para que eu casasse. Contanto que ficasse na sua companhia.
—Sabia que mulher nenhuma agüentaria isto. Sua maneira oblíqua de atormentar era invencível. Um dia eu vi quando seu pai indagou onde podia encontrar o pó de enxofre; estava com um acesso de urticária. Em vez de dizer onde escondera o remédio, ela sentou-se e passou meia hora falando sobre lepra. Mansamente. Depois levantou-se, mudou de vestido, calçou os sapatos e foi para a igreja. Sem pentear os cabelos.
—Não é piedoso falar assim dos mortos.
I8 Daqui podemos ver as cumeeiras das casas e as torres das igrejas; o claustro de São Francisco, deserto, com o Orbe Seráfico a descer do teto de madeira; as pedras lavradas da Igreja do Carmo; a águia bifronte com as asas abertas ante o púlpito, na Santa Casa da Misericórdia. A sudoeste, sob o luar, espraia-se o Recife, o casario ocupando as ilhas e a planície, escalando os morros periféricos. As luzes do farol giram com o rigor de planetas, o mar vai destruindo as casas dos Milagres.
—Quantas vezes, Mendonça, você terá feito essa viagem diária entre Recife e Olinda? Não tem também uma folha de papel, para marcar as viagens com uma cruz? Há três anos e meio sua mãe faleceu. Qual tem sido agora o impedimento? Você me visita, sem objetivo, há vinte e oito anos.
—Para falar a verdade, não me habituei ainda à idéia de casar-me. Esses anos todos de convivência com ela...
—Por que noivou comigo então? Gastei minha vida nessa espera?
8 Aparece na sala um escaravelho, voa sobre meus retratos, I bate no retrato de Giselda aos trinta e poucos anos, cai no chão de pernas para o ar, soergue-se. I8 Os dois emudecemos, olhamos suas asas membranosas, de um azul quase fosforescente. Outro, e mais outro, vêm do corredor, ambos cor de laranja, com breves manchas negras. O primeiro ergue vôo novamente, todos se entrecruzam, batem nas cadeiras, na lâmpada, na parede, no forro do piano, vão-se pela janela. I Com um estremecimento, Giselda cruza as mãos.
—Não posso evitar: desde criança tenho pavor desses bichos.
—Imagine se você visse algum inseto cavernícola, sem olhos, com as antenas maiores que os corpos.
—Nem quero imaginar.
—Ou as formigas processionárias africanas. Erram através das savanas e florestas, devorando as plantas e os bichos. Até as árvores fogem espavoridas.
—Peço que não volte a falar nessas coisas.
—É um assunto que ninguém pode ignorar. Estamos na época dos insetos: setecentos e cinqüenta mil para um milhão de espécies animais. Aviões rebocaram algumas redes, feitas de malhas finas, fizeram uma limpeza entre quatro mil e vinte mil metros. Onde o ar é mais puro e mais deserto. Apanharam trinta e seis milhões de insetos. Trinta e seis milhões, Giselda. Por isto eu havia começado a formular uma interpretação para o caso dos vidros fraturados. Acho que são eles os provocadores.
—Quem?
—Alguma espécie de insetos que eu chegaria talvez a identificar. As fraturas eram exclusivamente nas lâminas externas , isto é, no vidro Calorex. As 1âminas internas , as Athermanes, quando apresentavam defeitos, era por causa do que se chama "impacto mecânico acidental". Ora, não existe nada, à exceção talvez de um burocrata, cujas reações sejam mais constantes e fatais que um inseto.
—Certamente, Mendonça. E você é um exemplo, por mais que pense o contrário. Nos seus primeiros anos de emprego, olhava para os companheiros como se estivessem expostos a uma enfermidade contra a qual você era imunizado. Como se fosse possível atravessar sem perigo um campo de empestados. Falava nos portões que iria fabricar, nas grades para balcões, nos sustentos para jarros de flores. Ficávamos sentados à mesa, juntos, eu bordando o nosso enxoval, você desenhando os objetos que pensava fazer. De súbito, eu escutava um rumor como o que fazem os relógios de parede, antes de dar horas. Era você mesmo gerando-se em seu ventre, outro, não mais um homem, outro, um fibroma de palha e de barbante, com seu vocabulário reduzido e sagrado: requisições, modelos, requerimentos, autos, instruções, alíneas e parágrafos.
—É possível que tenha razão. Uma coisa, porém, eu consegui: pensar. Fazia tudo que era preciso fazer, mas apenas com as mãos. Por dentro, alheio à minha atividade, eu zombava das obrigações. Há percevejos-do-mato que vivem até um ano sem cabeça. Todos os meus companheiros são assim. Eu, não. Não me compare com eles. Odeio e desprezo aqueles pobres de espírito, que atribuem mais importância às instruções que a si próprios. Desistiram todos de pensar; os regulamentos pensam por eles. Ao sentar-se nas carteiras, sentem que representam a Instituição, quase no mesmo sentido em que o Papa representa a Igreja. São intocáveis e não erram. Através deles os códigos se transformam em ação, qualquer coisa de cego e de concreto. Uma sentença. Todo despacho, todo carimbo, todo selo é uma sentença necessária e inflexível, um ato que se cumpre obrigatoriamente e que ninguém pode violar sem perigo. Por isto eu me prendi à tarefa das janelas. As manchas tinham formas que não se assemelhavam a selos nem carimbos. E quem sabe se, através desse trabalho, eu não chegaria também a restaurar o que houve de melhor em mim?
(As vespas envenenam os porcos-do-mato e levam-nos para seus ninhos, paralisados. Suas larvas alimentam-se apenas de caça grossa e viva. Se, depois de haver aberto um túnel, sepultar o porco, depositar os ovos entre os seus espinhos e fechar o túnel, encontrar à entrada um bicho igual ao que acaba de deixar, abrirá novamente a galeria, voltando a fechá-la quando vir o porco sepultado e novamente a abri-la ante o porco insepulto, repetindo este jogo até cair de fadiga, incapaz de perceber que existe um animal enterrado e outro sobre a terra.)
—As fraturas nos vidros do prédio não apresentavam orientação preferencial ou distribuição regular. Mas havia uma ordem, uma mecânica, um compasso como o dos insetos: em todos os andares, do primeiro ao décimo, observava-se maior freqüência de janelas fraturadas no segmento Leste da face Norte; no segmento Norte da face Oeste; e no segmento Oeste da face Sul. A freqüência de vidros fraturados diminuía gradativamente em direção oposta a cada um desses segmentos.
8 O de cabelos grisalhos parece interessado, tem o ar de um pai que assiste o filho prestar bom exame:
—E a face Este?
—A face Este não é provida de janelas. Mas tudo indica que, se as possuísse, as mais atingidas seriam as do segmento Sul. Pode muito bem haver algum motivo para que a espécie de insetos responsável pelos estragos nos vidros tivesse inclinação pela aresta esquerda das superfícies verticais envidraçadas. Em Lima houve um edifício onde se observou o mesmo fenômeno. E as abelhas não executam, para indicar a fonte de alimento, uma dança complexa e exata, relacionada com a posição do sol? Assim, os insetos e a água se conjugariam para arruinar o prédio. A título de experiência, tentei evitar a entrada de água pelas gaxetas, vedando as bordas com mástique. Em algumas janelas, mandei substituir o par de lâminas por uma só lâmina de Calorex de seis milímetros de espessura, fixada com neoprene ou com massa não endurecível Igás, com bagueta. Veja bem: as janelas substituídas e não tratadas com mástique apresentaram um espectro de umidade na superfície interna das gaxetas; as outras resistiram à penetração da água. Mas tanto umas como outras continuaram a apresentar fraturas, naquele mesmo ritmo. Em algumas zonas fraturadas havia restos de matéria orgânica. Isto foi provado em exames de laboratório. Então pus-me a ler sobre insetos daninhos. Os que transmitem a peste, o cólera, o tifo, o tracoma, as disenterias, os sugadores de seiva, destruidores de frutos, roedores de sementes, comedores de folhas, de raízes, os inimigos dos animais domésticos, os que invadem continentes e flagelam regiões inteiras. Não encontrei referência a nenhum que destruísse os vidros. Mas aprendi uma coisa que me atordoa. Eles resistem a todo e qualquer tóxico e serão, um dia, os senhores da terra. Não é sem motivo que você estremece quando vê um besouro.
8 Que importa, se não existirei e se de mim não haverá descendência? Eu seguia de ônibus, quando vi o pássaro: voou sobre a relva e alteou-se em direção à igreja. Foi nesse dia que o adolescente apareceu, suas campainhas soando com alegria no frígido silêncio desta sala. Eu e Mendonça tínhamos os dedos enlaçados; estávamos assim há muito tempo, sem falar, e nenhum sentia a mão do outro. Então ele surgiu, Mendonça aos dezessete anos, como surgiram há pouco esses besouros. Entrou sorrindo, abriu o piano, correu os dedos pelo teclado, perguntou se iamos casar. Mendonça parecia não vê-lo, respondi que sim, ofereci-lhe um cálice de licor.
—Vocês já estão velhos demais para começar alguma coisa.
8 Foi nesse momento, numa iluminação, que percebi minha ruína. Estava noiva há vinte e quatro anos e de modo algum tencionava ainda casar-me com este homem. Eu já o decidira. E não sabia.
—Que terá sido feito de Raquel?
8 Ouvi dentro do homem, cujos olhos feriam com desprezo e náusea o adolescente, um rumor de mola que se parte e vibra distendida, abafado ranger de parafusos, de pregos arrancados. Respondeu em voz quase inaudível:
—Não sei quem era Raquel.
—Como não sabe? Lembre-se. Foi naquele ano, logo depois da Guerra, quando reviveram a Festa do Frontispício, na Igreja do Carmo. A devoção da imagem no nicho da fachada. Todos de joelhos sobre as lajes do adro, à noite, rezando a ladainha. Como não se lembra? Ela estava junto de você. Você rezava dos dentes para fora. Pensou, quando ela sorriu: "É uma rapariga". E ficou trêmulo. Não conhecia mulher.
8 Ao meu lado, o barulho de metais era bem nítido e mais assustador: folhas de zinco dobradas pelo vento.
—Não conhecia, Giselda. Foi ela quem tomou a mão dele e chamou: "Vamos". Saíram pela Camboa do Carmo como namorados, dobraram a Travessa de São Pedro, cruzaram o Pátio, entraram por um matagal, ficaram nus. Ela forrou o vestido no capim. Ele pensava nas cobras, mas deitou-se. Quando explodiu a girândola, Mendonça estava sentado e só então viu o corpo da mulher, estendido no chão. Debruçou-se, Giselda, e beijou aqueles pés empoeirados. Então, começou a chover. Ele deitou-se novamente e disse: "Vamos ficar aqui, Raquel. Vamos nascer sob a chuva, como duas sementes".
—Amaram-se outra vez?
—Isto. Amaram-se outra vez.
8 A narrativa exaltara-me. Mas eu não sabia se era o acontecimento ou o próprio Mendonça que me comunicava o ardor dos dezessete anos. Seu júbilo aderia a tudo, os móveis pareciam mais novos, a sala mais clara, o piano ressoava às palavras lançadas com mais força. Até sua perfidia brilhava como um sol. Naquele instante me lembrei do pássaro—houvera-o esquecido—e achei que devia evocar tão raro e simples acontecimento. Vou de ônibus. Ao passar ante o Colégio da Sagrada Família, um pássaro desliza sobre a relva e, erguendo vôo, orienta-se em direção à rosácea da capela. Com o movimento do ônibus, há um instante, uma fração de segundo em que o vitral chameja, refletindo o sol, numa palpitação breve e cegante. No centro dessa chama está o pássaro suspenso. Ofuscada, não mais o vejo e tenho a impressão de que ele foi consumido por aquela pulsação, engolido ou reduzido a cinzas pelo vidro em fogo.
—Podemos descobrir defesas contra a água, Giselda. Mas não contra os insetos. Justamente por serem tão pequenos, têm probabilidades enormes de sobreviver. Matam a sede numa gota dágua; num fragmento de palha escapam às inundações. Só há uma esperança: a extinção de numerosas formas foi precedida de uma tendência para o gigantismo. Crescer, para eles, é um inimigo mais fatal que os pássaros, os batráquios e os répteis. Nenhuma espécie de mimetismo os defende contra crescer muito. E inúmeros insetos estão crescendo. Descobrimos, esmagados contra uma janela, dois odonatos. Suas asas, cheias de nervuras grossas como veias, eram maiores que as de uma andorinha.
8 Os dois antigos Mendonça, hoje tão silentes, erguem-se, dão-me adeus. É sempre assim: nunca se vão ao mesmo tempo este Mendonça e os outros, nunca chegam juntos e "eles" jamais aparecem sozinhos. Na soleira, o mais jovem se volta para o velho:
—Não são os insetos que invadirão a terra. E sim os burocratas, Mendonça. Imagine que mundo. Depois de trinta anos, você nem sequer teve de quem se despedir.
I Ela fecha a porta, senta-se à minha frente. Em bandos espessos, verdadeiras nuvens com a extensão de uma cidade grande, alguns, sem motivo plausível, cruzam os mares, percorrendo milhares de quilômetros, até se dissolverem. Certas espécies não comem durante a migração, conduzidas por um impulso maior do que tudo e composto de todos os impulsos que constituem a sua natureza: comer, cruzar, repousar, tudo se transforma em ir. O bater de suas asas pardas ouve-se à distância. Não sei mais como é o rosto de Giselda, nem o descobrirei nesses retratos onde ele se desfez, de mecha sobre a testa (à Clara Bow?), com franja negra, ruiva, de sobrancelhas altas, de olhos espantados, parte do rosto coberta pela cabeleira loura, e os cantos dos lábios voltados para baixo, imitando não sei que celebridade, seu último ídolo, liame final de seu espírito com um mundo mais alto, onde aspirou viver mesmo depois de extinta a juventude.
—Você acha, Giselda, que o tempo traz obrigações?
—Acho que, quando não se tem substância, tudo é pretexto para negações. Você foi um fracasso.
—Devia ter visto o problema dos vidros? Até deslindá-lo?
—Devia ter-se ligado realmente a alguém. Ou a alguma coisa. Você tem vivido como um doido que passasse vinte, trinta anos numa estação, sem decidir-se a tomar o trem ou a voltar para casa.
—Se é isto o que pensa de mim, acho que devo ir embora.
—Há quatro anos queria romper este noivado. Desde o dia em que o vi aos dezessete anos. Lembra-se?
—Não.
—Contei a história do pássaro que voou até à altura da rosácea e que desapareceu dentro do brilho de um vidro. Você me olhava, com seus olhos quase de criança, como se eu não houvesse concluído. Então você levantou-se e esmurrou-o. Foi como se agitasse uma porção de campainhas, como se batesse em tubos de prata. Não se lembra? Nenhum dos dois gritava nem gemia. Você abriu a porta, foi embora com as suas campainhas, você disse três ou quatro palavrões, apanhou o chapéu e saiu sem despedir-se, com dez polias zumbindo no seu coração de pó. Não se lembra?
—Não. Não houve nada disso.
—Fiquei sozinha, escutando ainda aquele som de prata, que repercutia pelo corredor, e asseverei a mim mesma que não me casaria com você, e que só a esperança de revê-lo aos dezessete anos impediria romper este noivado. Como você envelheceu, Mendonça! Por que só ouço agora, em sua alma, rangidos de ferragens?
(Os insetos parecem criação de algum gênio ocioso e imaginativo. Corpos esféricos, em forma de gravetos, de sementes, de moedas, a cabeça alongada como faca, ápteros, de asas estendidas ou incrustadas no dorso, armados de pinças, de brocas, de aguilhões, de mandíbulas, olhos facetados, antenas, as pernas curtas, ou longas, ou incontáveis, negros, coloridos, mudos, vozes da Noite, cantores do Verão, úteis, predadores, habitantes das águas da superfície, das profundezas, do ar, eles, mais do que nenhuma outra espécie viva, sondam as possibilidades do mundo.)
—Devem ter sido estes anos todos de ressentimento que mataram o que havia de melhor em mim.
—Não existem mais cidades inexpugnáveis. Mas um homem, para ser saqueado, tem de abrir os portões.
—Talvez houvesse gasto as minhas energias no esforço que fiz para me defender. Não queria ligar-me àquela gente. Não era como eles e detestava o que eram. Eu pensava. Pensei até o último instante, e o Chefe sabia. Sabia que eu desprezava todos os gestos mecânicos. Foi por isto que me confiou o problema dos vidros. Mas compreendi o ardil e fui embora. Pus o paletó, afastei a cadeira...
—Agora, não precisa pôr o paletó. Nem afastar o sofá. Também não é preciso despedir-se.
8 Duas aranhas saem da boca de Mendonça, descem pelo ombro, saltam para o chão, um grilo põe-se a cantar. Mariposas giram em torno da lâmpada. Pela janela aberta entra zumbindo uma nuvem de mosquitos. Na veneziana fechada aparece uma lagarta, gafanhotos pousam no sofá e na moldura do espelho. Na face exterior da vidraça vejo um louva-a-deus olhando-nos. Três besouros enormes irrompem zumbidores. Formigas vermelhas passam por baixo da porta, seguem em fila cerrada na direção do meu quarto. Enorme borboleta azul adeja sobre nós. Sinto na perna esquerda o rastro de uma centopéia.
—Você não voltará a ver-me, Giselda. Em idade nenhuma.
8 Passa por mim, com seu barulho de correntes arrastadas, de
arame farpado rasgando couro de bois, de argola de rede gemendo ao peso
de mortos soprados pelo vento. Fecho os olhos e recordo os alegres rumores
cuja volta esperei em vão ao longo destes anos, sinetas de colégio,
guizos, maracás, sons de brinquedos de corda, balanço de
criança rangendo compassadamente em sombreados galhos de mangueira.